Em Trieste com Jan Morris
O leitor Miguel Silva Machado partilha a sua experiência na cidade italiana, onde chegou pela mão da escritora galesa.
“Estás em Trieste?”, diz-me admirado ao telefone um amigo espanhol, jornalista e escritor, que conhece mais de meio mundo…mas não esta cidade no Adriático!
Sim, e foi através de um livro que aqui cheguei, respondo, de Jan Morris. Foi realmente a leitura de Trieste (no original Trieste and the Meaning of Nowhere – 2001), Tinta da China, 2021, que me guiou até esta cidade, durante séculos o principal porto de Viena capital do Império Austro-Húngaro, a 500km de distância!
Cheguei no comboio Eurocity de Viena via Liubliana para visitar a cidade que Morris descreve como ninguém. Curiosamente, havendo ali itinerários turístico-literários sobre escritores (James Joyce; Italo Svevo; Richard Francis Burton; Gabriele D'Annunzio; Umberto Saba e outros), alguns destes até com estátuas em locais que frequentavam, Morris é grande ausente. Mas não esquecida, Theodora Negrea escreveu na revista Intrieste (Summer 2022) o artigo Trieste in Six Books to Enjoy This Summer, o qual começa exactamente com o Trieste and The Meaning of Nowhere…fiquei aliviado, é provável que apenas seja muito recente a sua morte (20 de Novembro de 2020) para o devido reconhecimento.
As referências que Morris nos dá são tantas e tão detalhadas que mal precisamos de outro guia. Andamos pela cidade, olhamos avenidas, edifícios, praças, monumentos, igrejas, o porto, e estão como descritos. É certo que a esplanada da catedral de San Giusto não é tão simpática como Morris descreve – afinal de contas o livro, é de 2001 – e, ao contrário, Morris não refere a animação nocturna e os pequenos comércios de uma série de ruas entre as Via della Pescheria e a Via dei Cavana, que o merecem. Entre dois dos mais emblemáticos cafés da cidade, o Caffè Tommaseo, perto do mar, e o Caffè degli Specchi, na imponente Piazza Unità d'Italia, foi difícil escolher. Preferi o primeiro, mais calmo, sem a pressão turística do segundo, mais bem situado.
Além dos cafés e de livrarias/alfarrabistas que resistem, Trieste mantém movimento nos portos, mais visível o junto ao centro da cidade, com navios de cruzeiros – um passeio pelo molhe Audace ao final do dia continua a atrair locais e visitantes – e uma série de imponentes edifícios dos tempos do Império Austro-húngaro e da época fascista, todos hoje objecto de estudo pelos interessados em arquitectura e arte. Não se veja aqui qualquer preferência ideológica, em vários locais da cidade há monumentos e memoriais à libertação no final da Segunda Guerra Mundial pelos exércitos Aliados e lembra-se a perseguição aos judeus que Mussolini ali lançou. Foi também uma cidade da Guerra Fria, Estados Unidos e Reino Unido ocuparam-na entre 1945 e 1954, no chamado Território Livre de Trieste, evitando a ocupação jugoslava que reivindicava a cidade, tendo apenas em 1975 sido assinado o acordo fronteiriço entre Itália e o seu vizinho balcânico.
A custo vou deixar Trieste e para isso nada melhor que um excelente almoço no Harry's Bistrò, o restaurante mais económico do Grand Hotel Duchi d'Aosta, nada mais nada menos que o antigo Albergo onde Morris sempre ficava em Trieste. Talvez em agradecimento pelo livro que aqui me trouxe. Valeu a pena.
Miguel Silva Machado