Vamos fazer greve total às compras de Natal

Celebrações tão fundamentais como o Natal ou a Páscoa, são a meta final de um calendário milenar, que implica viver plenamente as etapas anteriores.

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@designer.sandraf

Querida Mãe,

Não, não e não. Estou num supermercado à frente de calendários de chocolate de Natal, aqueles calendários do Advento com portinhas que se abrem de 1 a 25 de Dezembro, e apetece-me atirá-los todos ao chão! Isto é ridículo. Estamos a meio de Outubro!

Não adianta andarmos a ler mil livros sobre como aprender a “viver no presente”, a seguir podcasts sobre os benefícios do “aqui e agora”, se depois embarcamos nesta loucura de estar sempre meses à frente, sempre a antecipar, sempre com a sensação que já estamos a falhar porque ainda não comprámos isto ou aquilo.

Entramos numa loja com 40 graus lá fora e lá está a colecção de Outono/Inverno, e tarda nada enchem as montras com fatos de banho, deixando-nos sem saber a quantas andamos. É uma depressão.

Mãe, vou fazer greve total a este disparate, e não compro nada de Natal até dia 1 de Dezembro. Junta-se à minha luta?


Ana,

A sério, o mundo está doido. Além do mais, quem é que comprando um calendário de chocolates em Outubro, resiste a abri-los e comê-los de seguida no espaço máximo de 15 dias?

Quanto à luta, conta comigo — celebrações tão fundamentais como o Natal ou a Páscoa, são a meta final de um calendário milenar, que implica viver plenamente as etapas anteriores. Até porque, sem entender a sequência, sem seguir o percurso, vivendo-as como início e fim, em si mesmas, compactando-as num único dia, corremos o risco de abrir dentro de nós um vazio, um buraco negro, que depois nada consegue preencher. Não admira que tanta gente seja depois tomada por um enorme sentimento de desilusão, sofrendo de uma depressão pós-Natal.

Não me vou por aqui a pregar, até porque a minha teologia é de vão de escada, e a antropologia idem aspas, mas as festas religiosas ou pagãs, que em muitos casos ao longo dos séculos se fundiram numa única, seguem sempre o caminho do sol, da lua, da luz (ou da falta dela).

Neste preciso momento despedimo-nos do Verão, e preparamo-nos para o Inverno — temos de deixar cair algumas folhas, de enterrar outras, aceitando que é preciso morrer para renascer, o que aliás está à vista em qualquer jardim por onde passemos, em qualquer pedaço de terra no horizonte. E aí vem o dia de todos os santos, o dia dos finados e, até, a importação do Halloween, com o seu desfile de monstros, numa versão primitiva de uma “terapia de exposição” ao que nos mete medo.

Quando, finalmente, chegamos a Dezembro, mergulhados no escuro do escuro começamos, então sim, a abrir portas que servem como pedras para atravessar um rio com os olhos postos na esperança de que volte a nascer a luz — em latim a palavra advento significa “chegada” — confirma-mo a Wikipédia.

E se para os cristãos esse Natal é o nascimento de Jesus Cristo, aquele que veio salvar o mundo, a versão laica não se afasta muito disto: no dia 25, privilegiamos as crianças, queremos fortalecer ou até ressuscitar relações familiares, e todos fazemos figas (a expressão não é ortodoxa, mas adiante) para que o próximo ano seja um novo início, uma nova oportunidade...

Pronto, dito isto, fica mais do que justificada a tua vontade de atirar a prateleira do supermercado ao chão. E nós, avós, devíamos estar na primeira linha do combate, porque nos cabe impedir que o Grinch do consumismo roube a espiritualidade, a magia e a emoção do Natal.


O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam.

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