Palato pronto

O meu primeiro copo de vinho havia de ser tomado sozinha. Já ouvira falar do romantismo da casta Syrah – pedi. Foi o início de um amor e – agora que penso nisso – de uma nova idade.

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Bruno Simões Castanheira

Gostava que a minha primeira garrafa de vinho tivesse sido aberta num fim de tarde, a anunciar o jantar, com os meus pais e os meus irmãos reunidos à volta da mesa branca da cozinha – a única que havia –, e onde só com a boa vontade dos que se gostam muito cabiam todos. Que a vida tivesse sido menos expedita em tomar-me metade dessas pessoas, deixando-nos a mesa mais vazia – sem que isso representasse, curiosamente, mais espaço (o vazio e o espaço manifestam-se de formas bem diferentes). Mas nessa altura eu ainda não tinha o palato pronto.

Tinha já um prazer enorme em ler os rótulos das garrafas. Em viajar pelas paisagens com nomes de castas, campos tão férteis para a invenção. Porque Castelão, Aragonês, Arinto, Chardonnay, na minha cabeça não eram nomes de uva. Eram reinos com trovadores na rua, rios límpidos e de margens macias onde os animais e as pessoas descansavam à sombra.

Mas aconteceu que o meu primeiro copo de vinho havia de ser tomado sozinha. No último andar de um dos prédios mais altos de Setúbal, onde à noite frequentava o Piano Bar. Uma casa-conforto onde habitualmente bebia chá e lia alguma coisa. Até que um dia mudei de plano. Já ouvira falar do romantismo da casta Syrah – pedi. Foi o início de um amor e – agora que penso nisso – de uma nova idade. Não pelo copo de vinho em si, mas pelo que essa noite representou com os elementos ali postos: a leveza da Baía do Sado, os milhares de luzes da cidade, a calma instalada nas ruas depois de a gente recolher. A memória que tinha dos dias em que só lia os rótulos, mas via o efeito espirituoso e animado que deixava pela casa, nos dias de festa. Agora mulher.

Hoje o Piano Bar já não tem piano, mas, na sua favorecida posição cardeal a Este, continua a estender-nos as possibilidades quase infinitamente. De um lado os jardins de vinhas de Palmela a Poceirão, do outro a costa que segue sul abaixo, onde adivinhamos tantos caminhos de videiras quantos os brindes de celebração que podemos fazer.

A próxima garrafa será com o meu pai e o meu irmão.


Este artigo foi publicado no n.º 4 da revista Solo.

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