O meu refúgio num tonel de vinho

Quando há uma década a crise nos tolheu a vida, enalteci o aprumo que a produção vinícola tomou no meio do desnorte. No meu distrito, o vinho tornou-se um desvelo para o palato.

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Gonçalo Villaverde

O meu avô Clemente saiu de Castro Daire e assentou tropa em Lisboa. Por aqui ficou para casar.

Eu, que nasci no alto da colina almadense, descobri que se descia pela encosta até à beira-Tejo, onde o meu avô trabalhava nos armazéns de vinho Arealva, encostado ao Olho do Boi, onde os bacalhoeiros carregavam gelo antes de se fazerem à Terra Nova.

Um dia, o meu avô levou-me até à baixa-Tejo para brincar com o filho do encarregado da Arealva, que tinha uma vida muito solitária junto ao rio, sem amigos para gerar brincadeiras. O armazém fervilhava de trabalho, as
pipas rolavam, a fragata esperava ao fundo do cais para transportar mais um carregamento até Lisboa e seguir para Inglaterra. O alvoroço entre os trabalhadores cresceu porque os dois miúdos que andavam a brincar haviam desaparecido.

Somos procurados pelo armazém escurecido, entre tonéis, barricas e grades de garrafas. O Tejo murmurava sem novidades. É lançado o bote da fragata para a água esverdeada, mas não há rasto ou gemido – estamos silenciosos a jogar às escondidas, calados, à espera da derrota do outro.

O anticlímax surge algum tempo depois de sofrimento colectivo, quando me descobrem ao fundo de um casco de carvalho. Há gritaria no ar, palavrões, gargalhadas, o meu avô chora.

Quando há uma década a crise nos tolheu a vida, enalteci o aprumo que a produção vinícola tomou no meio do desnorte. No meu distrito, o vinho tornou-se um desvelo para o palato – de início provei desconfiado. Entre outras, a Casa Ermelinda Freitas instalou no mercado uma qualidade/preço que enalteço onde calha – a última vez foi em Paris, e os de França, argumentado o óbvio, sorriram, beberam e perguntaram se podiam pedir mais. Do syrah ao cabernet sauvignon, a que junto o branco sauvignon blanc, ergo a taça. Mas, naqueles anos de menino, o Sumol de laranja era o meu aconchego preferido.


Este artigo foi publicado no n.º 2 da revista Solo.

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