Aves que nascem em ano de seca estão toda a vida em desvantagem

Eventos climáticos extremos têm efeito duradouro nas populações de milhafres-reais observadas em Espanha. Estudo mostra que a seca reduz não só a disponibilidade de presas, mas também a quantidade de alimento que os pais dão aos filhotes.

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Milhafre-real no Parque Nacional Doñana, em Espanha Fabrizio Sergio/DR

As condições que um ser vivo tem ao nascer podem condicionar toda a sua trajectória. Os milhafres-reais que chegam ao mundo durante um período de seca já estão em desvantagem ao longo de toda a vida, revela um estudo publicado esta terça-feira na revista científica Nature Communications.

“Ficámos muito surpresos com a constatação de que, mesmo numa espécie conhecida pela longevidade, o efeito da escassez de água nos milhafres-reais ainda é visível muito tempo depois da seca. Surpreendeu-nos ainda que este aspecto tenha sido muito pouco abordado na literatura sobre impactes climáticos, apesar de tanta atenção e trabalho de investigação sobre mudanças climáticas”, afirma ao PÚBLICO Fabrizio Sergio, primeiro autor do artigo científico.

Considerando que os milhafres-reais podem viver até 30 anos, o estudo agora publicado sugere que os eventos climáticos extremos têm um efeito duradouro nas populações estudadas no Parque Nacional de Doñana, na Espanha. Apesar de a espécie Milvus milvus não estar ameaçada, segundo a classificação da Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN)​​, estes animais já estão em declínio em algumas regiões.

Os cientistas elaboraram modelos de projecção populacional recorrendo aos dados relativos aos efeitos de longo prazo da seca. E descobriram que os eventos extremos estão associados a um declínio de 40% no tamanho previsto da população, bem como à diminuição de 21% do tempo de extinção.

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Os anos de seca estão associados a milhafres-reais “bebés” mais magros e menos filhotes a atingir a idade adulta Fabrizio Sergio/DR

“Populações de animais podem estar a sofrer com as mudanças climáticas muito mais rapidamente do que se imagina hoje. Isto pode contribuir para explicar o ‘mistério’ do desaparecimento expressivo e difuso de populações, e até de espécies que [antes eram] observadas em todo o mundo”, lamenta Sergio.

A crise climática está a aumentar a frequência e a intensidade de eventos extremos – é o caso da seca hidrológica, de incêndios e furações. Estes fenómenos naturais, que antes tendiam a ser mais espaçados e menos violentos, têm uma repercussão considerável na vida selvagem. Enfrentar a escassez de água logo ao nascer pode ter implicações duradouras, afectando a capacidade reprodutiva de um indivíduo, bem como a sua resistência face a outros eventos extremos no futuro.

A equipa de Fabrizio Sergio realizou um estudo longitudinal sobre os efeitos da seca hidrológica numa população de milhafres-reais. Os autores descobriram que a seca reduziu não só a disponibilidade de presas na reserva ecológica de Doñana, mas também a quantidade de alimento que os pais eram capazes de dar aos filhotes. O resultado? Milhafres-reais-bebés mais magros e menos filhotes a atingir a idade adulta em anos de seca.

O artigo da Nature Communications revela ainda que a experiência da falta de água não deu aos pequenos milhafres-reais qualquer vantagem para sobreviver às secas subsequentes. Ou seja, neste estudo, as dificuldades não tornaram os indivíduos mais resistentes. Mesmo quando os filhotes conseguiam ultrapassar um contexto de stress hídrico, as hipóteses de sobrevivência destes indivíduos nos anos seguintes eram inferiores às dos milhafres-reais nascidos em épocas com precipitação típica. Em resumo, nascer em tempos de chuvas regulares é mais vantajoso.

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Os cientistas realizaram o estudo longitudinal no Parque Nacional Doñana, na Espanha Fabrizio Sergio/DR

O trabalho desenvolvido pela equipa de Sergio consiste num estudo de caso, ou seja, debruça-se sobre uma população de uma única espécie num território definido. Por outras palavras, não sabemos se o impacte negativo que a seca tem nos milhafres-reais pode ser extrapolado para outras espécies. No entanto, sublinham os autores, os efeitos de longo prazo de eventos climáticos extremos no início da vida animal são amplamente ignorados nas previsões dos impactos da crise do clima.

“É importante que estudos semelhantes sejam realizados com outras espécies. Mas acreditamos que esses trabalhos posteriores encontrarão com frequência esta herança do clima, principalmente porque os efeitos das dificuldades natais são considerados frequentes na literatura ecológica. Se forem, de facto, comuns, este dado seria muito importante para a conservação, porque muitas, se não a maioria, das previsões de impacto climático nas populações de animais seriam consideradas demasiado optimistas. Como é comum nas mudanças climáticas, o tempo que ainda temos pode estar a esgotar-se ainda mais rapidamente do que imaginamos”, afirma Fabrizio Sergio por e-mail.

Os cientistas realizaram este trabalho no Parque de Doñana porque consiste, desde os anos 70, num “local único para o desenvolvimento de estudos de longo prazo sobre espécies de aves de rapina, dada a sua longa história de marcação individual”. Trata-se de uma reserva ecológica com uma vasta e “icónica” zona húmida.

“Infelizmente, o Doñana está na linha da frente no que toca aos problemas das alterações climáticas e, em particular, a crescente frequência de extremos climáticos, como a seca”, lamenta Sergio.

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