Tucídides e a invasão da Ucrânia: a actualidade de um grande clássico

A História da Guerra do Peloponeso de Tucídides, um dos grandes clássicos do pensamento estratégico adquire uma importância acrescida para a análise da política internacional no contexto da repugnante invasão da Ucrânia.

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"O direito, nos tempos que correm, é apenas uma questão aplicável aos que se igualam em poderio", escreveu Tucídides EPA/ALEXEI KUDENKO/SPUTNIK/KREMLIN POOL / POOL

Tucídides (455 a.C. - 399 a.C.), um dos gigantes da antiguidade clássica, escreveu a História da Guerra do Peloponeso aspirando a um grande rigor de análise. Ao invés de outros eruditos, Tucídides não reeditou princípios metafísicos ou religiosos para explicar a acção das lideranças políticas e o comportamento das cidades-Estado helénicas. O seu labor assenta numa inquirição rigorosa dos factos pretendendo alcançar um patamar de explicação superior.

O enquadramento da sucessão de ocorrências no contexto de uma paz insegura que levaria à guerra entre Atenas e Esparta — os dois colossos ao tempo — é delineado de forma crítica procurando determinar as causas determinantes dos acontecimentos. Neste sentido, legou-nos história científica. Reconhecidamente, para o autor não era o “destino” ou algo exterior aos homens que fazia mover a história, antes a sua acção e os seus interesses. Como acentuou a grande helenista Jacqueline de Romilly (1913-2010), para Tucídides é fundamentalmente a regra do interesse entre Estados que determina a hierarquia dos factores. Ele convoca-nos a ver algo de mais profundo e permanente na arena política internacional.

Segundo Charles Norris Cochrane (1889-1945) — um classicista canadiano quase desconhecido em Portugal — num trabalho fundamental intitulado Thucydides and the Science of History na obra do grande clássico entrevemos a própria génese da análise das relações internacionais, destacando que Tucídides era um cientista na exacta medida em que procurou uma abordagem extirpada de misticismo adaptando os métodos de Demócrito e de Hipócrates — contemporâneo de ambos — na interpretação dos processos políticos. A sua aplicação ao estudo das relações entre Estados constitui a originalidade imediata de Tucídides e a sua reivindicação a ser olhado como um autor genuinamente científico.

O conflito entre os gregos que alastraria a todo o mundo helénico, incluindo a Sicília — alvo do bisturi rigoroso de Tucídides —, é explicado de forma meticulosa, circunstanciando criteriosamente as operações militares, as negociações políticas, as alianças e os tratados que influenciaram a evolução dos acontecimentos. Profundamente céptico, afasta quaisquer explicações superficiais sobre a causa da guerra entre os helénicos no período subsequente à vitória sobre os persas. A sua História é universalmente reconhecida como um modelo de teorização, de grande clareza, sendo Tucídides considerado o primeiro dos grandes cientistas políticos.

Aliás, a própria palavra grega theorein — que significa “olhar para” — sugere a construção de mecanismos de intelecção com o propósito de ordenar factos. Neste sentido, Tucídides teoriza sobre classes de eventos que liga entre si, classificando-os, derivando daí proposições empíricas duradouras sobre as dinâmicas interestaduais que permitem alargar o espaço temporal das observações, contribuindo para o aprofundamento da reflexão sobre a causalidade da guerra, evidenciando, de facto, uma complexidade surpreendente.

A guerra na Ucrânia e o rompimento do equilíbrio europeu

Ora, é precisamente no quadro da discussão sobre as orientações da política externa de carácter imperialista de Atenas que Tucídides readquire especial pertinência para o caso da guerra iniciada pela Rússia contra a Ucrânia. Segundo ele, o imperialismo de Atenas — aliás como qualquer outro — está submetido primeiramente a uma lei política: o Estado imperial é detestado pelos súbditos e, como tal, não pode senão mantê-los debaixo do seu jugo. O extraordinário Diálogo de Milos — ilustrado por Tucídides na parte final do capítulo V — entre os invasores atenienses e os habitantes da pequena ilha de Milos em 416 a.C., integra uma das mais notáveis observações da ciência política:

…uma vez que sabeis, tão bem como nós, que o direito,

nos tempos que correm, é apenas uma questão aplicável

aos que se igualam em poderio, enquanto que o forte faz

o que quer e o fraco sofre o que deve.

Porém — admoesta exemplarmente Tucídides — equacionando de forma premonitória realismo com a necessidade de prudência nas relações internacionais, o uso exacerbado da força pela armada ateniense expresso no massacre superveniente de Milos prenunciaria a derrota de Atenas em 404 a.C. Tal é o desenlace que com grande probabilidade também espera o Kremlin a prazo.

O contributo de Tucídides para a compreensão das dinâmicas interestaduais pode, pois, considerar-se deveras excepcional. A observação que empreendeu sobre as circunstâncias das crises que levariam à Guerra do Peloponeso implicou a descoberta de regularidades e de padrões específicos. Como Tucídides enuncia, o incremento excessivo do poder de um Estado cria um problema inultrapassável de vulnerabilidade a terceiros – geralmente referido no contexto das teorias das relações internacionais como dilema de segurança -, pelo que a estabilidade do conjunto está correlacionada com a manutenção da balança de poder, isto é, com algum equilíbrio no sistema.

No caso da guerra em curso contra a Ucrânia, a releitura de Tucídides implica que a Rússia não deve aumentar a escalada das suas acções ofensivas contra a Ucrânia sob pena de poder vir a internacionalizar perigosamente o conflito. A entrada da Finlândia e da Suécia na NATO é a expressão mais actual da procura do restabelecimento de algum reequilíbrio no sistema europeu após a intolerável agressão à Ucrânia. E, naquele que constitui um dos maiores expoentes de inteligência política em busca das causas mais profundas da guerra — o que permite estabelecer um paralelo histórico com a gravíssima circunstância em que hoje nos encontramos — Tucídides escreve:

A verdadeira causa desta guerra é, na minha opinião, aquela que oficialmente mais tem sido ignorada. O crescimento do poderio de Atenas e o alarme que provocou em Esparta tornaram a guerra inevitável [leia-se, no quadro presente, a analogia com a acção imperialista da Rússia].

A análise intemporal de Tucídides configura, pois, um contributo único para o estudo da causalidade da guerra e para o estabelecimento precursor de uma ciência da polemologia. Tomamos a liberdade de convidar, nesta hora, os leitores do PÚBLICO a reapreciar esta obra fundamental.

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