Dão, dia 1: Gouveia, a serra da Estrela e as vinhas velhas

A vinha está sempre atrás dos pinheiros. Escondida. Como o trabalho que muitos estão a fazer de regresso ao território e ao passado. Reportagem no Dão, parte I.

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Uma das vinhas da Casa da Passarella, onde o enólogo Paulo Nunes está a concentrar a Touriga Nacional. Anna Costa

“Há uma coisa no Dão: se for pelas estradas principais, não vê vinha”. É o que nos diz Vanda Pedroso, técnica do Centro de Estudos Vitivinícolas do Dão (CEVD) desde 1982, assim que entra no carro do Terroir. E assim é. No Dão, região demarcada desde 1908, a paisagem é vinha, olival e pinhal. Mais concretamente, 20.897 hectares de vinha aprovada para Denominação de Origem (DO) e Indicação Geográfica (IG). Muitas oliveiras, demasiadas por explorar. E muitos pinheiros, que tomaram o lugar das vinhas de outrora e escondem as que chegaram aos dias de hoje. É preciso fixar a vista e procurar um verde mais claro entre o pinhal. Os vinhos são sinónimo de blend, vinhas velhas e muitas outras castas para além de Touriga Nacional e Encruzado.

Em vários trajectos, sempre por secundárias, percebe-se a orografia desta região atravessada pelos rios Mondego e Dão: parece um prato fundo em que as “bordas” são as serras da Estrela, do Caramulo e do Açor e o centro um imenso vale; só que esse vale tem na verdade vários pequenos montes e vales. Só há “uma entrada”: o vale do Mondego. O Dão tem sete sub‑regiões (Alva, Besteiros, Castendo, Serra da Estrela, Silgueiros, Terras de Azurara e Terras de Senhorim), mas se quisermos falar de diferentes Dãos fará mais sentido falar em três zonas: Gouveia e encosta da Serra da Estrela, Nelas, Sátão e Penalva do Castelo. Que, curiosamente, correspondem às três sub-regiões criadas nos anos 1960 – Central Norte, Central Sul e Periférica. E que dão o mote à divisão que fizemos deste trabalho de reportagem, nesta primeira parte, falemos de Gouveia (a cidade está a 700 metros de altitude), da Serra da Estrela e da valorização crescente das vinhas velhas.

Vanda Pedroso, alfacinha de 65 anos e 40 anos de Dão, foi nossa “guia” num roteiro de dois dias na região. Nós andámos por lá mais um. Apanhámo-la em Nelas, na Quinta da Cale, onde fica o CEVD, e seguimos para Gouveia. “Antigamente, esta encosta do lado de Nelas voltada para o Mondego estava cheia de vinha. Desapareceu tudo”, conta. E como era a vinha? “Eram encostas com socalcozinhos. E na borda havia videiras e na outra parte árvores de fruto. Eram vinhas consociadas com oliveiras”. Ainda se vêem alguns desses socalcos com uma videira aqui, outra acolá. Vêem-se também muitos “bravos”, plantas de videiras que nasceram espontaneamente e que são testemunho desse passado. Os anos dos subsídios para quem arrancasse a vinha fizeram parte do estrago.

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Infografia: Francisco Lopes

Preservar as vinhas velhas

É em Gouveia que hoje apostam novos e experimentados produtores, por causa das alterações climáticas – há áreas maiores, mais planas e com mais água –, mas não só. É na encosta da Serra da Estrela que existe a maior mancha de Vinhas Velhas, a que cada vez mais empresas estão a dar valor.

Ao entrar na Casa da Passarella, vemos vinha nova, plantada em 2022, Baga e Tinta Pinheira (Rufete no Douro). “De há seis ou sete anos para cá, as quintas mais evoluídas têm diversificado as castas [que têm plantadas]”, atalha Vanda Pedroso. Desde os anos 1990 que se usavam cinco variedades no Dão (Touriga Nacional, Tinta Roriz, Jaen, Alfrocheiro e a branca Encruzado), quando o CEVD tem ensaiadas 91 castas (49 tintas, 42 brancas).

Paulo Nunes, o enólogo consultor – que trabalha em três regiões e escolheu o Dão para explorar também vinha própria, em Santa Maria e Vodra, Seia – , tem investido em algumas dessas castas escondidas na Passarella, sempre em “respeito pelo passado”, ressalva. Ao volante da carrinha de trabalho, por entre os dez hectares de vinha da quinta, vai explicando. “Aqui, é o Pinot Noir, no limite da Passarella, é o local mais fresco. Plantámos Pinot porque já existia aqui Pinot plantado”. No Pinot Noir as alterações climáticas determinam hoje um ciclo mais longo, mas para já isso joga a favor da enologia, diz Paulo. Aquela vinha é, de resto, “quase um laboratório de microbiologia” para este enólogo, que dali tirou a levedura que passou a inocular noutras fermentações. “A vinha do Tinto Cão plantámos porque existia lá uma vinha onde era predominante a Tinto Cão”. E assim por diante. Noutras parcelas vemos Tinta Amarela (Trincadeira), Tinta Pinheira, Alvarelhão e Tinta Carvalha (segundo Vanda, só dois produtores no Dão estarão neste momento a plantar esta variedade muito produtiva e outrora muito utilizada na região), todas tiradas do material genético da Vinha das Pedras Altas, um dos talhões de vinhas velhas que a Passarella tem vindo a adquirir.

“Nunca sabemos se está aqui a última planta de uma variedade. E por outro lado nunca conhecemos o potencial de determinada parcela. Não conseguimos virar as costas e depois a Ana [Júlia Pereira] chateia-se comigo”, conta Paulo Nunes. “O problema é ter mão-de-obra”, justifica, ao seu lado, a responsável de viticultura da Passarella. Em 2012, Paulo Nunes começou a trabalhar com quatro viticultores vizinhos, o objectivo era “aprender com eles”. A idade avançada e a falta de seguidores na vinha ditaram a venda. “Já temos pelo menos seis parcelas de vinhas centenárias. Qual é o problema disto? É um vício. E sim, há quem nos bata à porta a pedir que fiquemos com isto”.

Mas, com o foco certo, Paulo Nunes garante que é rentável. Dali sai o Fugitivo Vinhas Velhas, “a caixa de experimentação”. “Fazemos 3000 garrafas que em prateleira vendemos a 25 euros cada. E todos os anos esgota. Há dez anos pensava: temos de ganhar algum dinheiro naquelas vinhas convencionais para pagar estas”. Isso mudou. E estes vinhos são “sempre a expressão da parcela e nunca da casta”. Alguns saem dessa “espécie de purgatório” e saltam para o portefólio regular.

“Há 40 e tal castas nas Vinhas Velhas, que por sua vez estão nas mãos de pequenos viticultores com muita idade. Sem ninguém que lhes siga as pisadas. As pessoas acabam por arrancar as vinhas”, refere, por seu turno, Vanda, lamentando que não haja mais novos a dar a mão a esses velhos. A técnica do CEVD faz prospecção nas Vinhas Velhas desde 2011 e recentemente orientou um curso de identificação de castas, teve 32 inscritos. Paulo Nunes estava lá.

Era típico no Dão haver vinhas consociadas com oliveiras. Nas parcelas antigas que a Passarella tem adquirido, ainda é assim. Anna Costa
Parcela de Uva-Cão, uma das variedades antigas que Vanda Pedroso ajudou a valorizar e com que Paulo Nunes faz um monovarietal. Anna Costa
Videira de vinha velha agarrada a um esteio de granito, típico no Dão. Anna Costa
Paulo Nunes e a responsável pela viticultura da Passarella, Ana Júlia Pereira. Anna Costa
Se o enólogo não consegue voltar as costas a parcelas de vinhas velhas, para Ana Júlia Pereira esse "vício" de Paulo Nunes é um desafio. "O problema é ter mão-de-obra", diz. Anna Costa
O enólogo da Passarella com uma garrafa de Barcelo: o monovarietal da colheita de 2021 está engarrafado, mas só deverá chegar ao mercado em 2023, “mil e poucas garrafas”. Anna Costa
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Era típico no Dão haver vinhas consociadas com oliveiras. Nas parcelas antigas que a Passarella tem adquirido, ainda é assim. Anna Costa

Tornar o Dão grande outra vez

Pensamento idêntico ao de Paulo tem os Niepoort, com quem falámos na Quinta da Lomba, dias antes de irmos ao Dão com Vanda. Quando perguntámos a Dirk Niepoort que castas tinham naquela quinta com dez hectares de vinha e encostada a Gouveia, respondeu-nos: “Não me interessa. O sítio é mais importante que as castas. As castas são importantes nos primeiros 20 anos, depois é o sítio que domina”. “Tu abres uma garrafa e sabes que é da Lomba. É específico”, tenta o filho, Daniel. Uma vez esmiuçadas, as respostas de um e de outro remetem afinal para o terroir – importam o solo, o clima e a(s) casta(s).

Quando Dirk começou a trabalhar com o pai, Rolf Niepoort, em 1987, e mesmo antes disso, “bebiam-se vinhos velhos do Dão” lá em casa. “Era a região mais emblemática de Portugal. Por isso, é que eu disse que estava adormecida [perguntámos-lhe por essa afirmação num live recente no Instagram]. Tem um potencial que eu penso que é muito grande. Tem o potencial de ser a região mais importante de Portugal em dimensão. Mesmo as partes mais baixas do Dão são relativamente altas. Temos os solos graníticos que têm muita importância nas características do Dão”, explica. A região dá vinhos com corpo e “acidez natural”, mas menos intensos e mais frescos do que os do Douro e do Alentejo. Vinhos longevos. É uma região com “muita personalidade, tradição e dimensão”, mas que, diz, parece “querer viver à sombra” de outras. “O mundo está farto dos Cabernet Sauvignon”, sublinha.

“Fazer vinhos autênticos, do Dão”, é tarefa agora para o filho Daniel, o actual director de enologia da Niepoort e com quem Dirk visitou pela primeira vez a Quinta da Lomba em 2014. “Saímos de Madrid às 6h – 5h de Portugal – e chegámos muito cedo. O Álvaro de Castro tinha-nos convidado para almoçar. Tinha-me dito que havia esta quinta à venda. Eu não tinha intenções de comprar, mas já tinha comprado a Quinta de Baixo, na Bairrada, e estávamos a fazer uma brincadeira com o Álvaro no Dão já, 2500 litros. Viemos cá parar e eu fiquei fascinado. A vinha estava muito má. Ou pegávamos nisto naquele momento ou ia perder-se”.

Dirk visitou pela primeira vez a Lomba em 2014, com o filho Daniel. Não estava à procura de comprar uma quinta no Dão, mas não podia deixar que se perdesse. Anna Costa
Há dois anos e meio em Portugal, Daniel Niepoort é o actual director de enologia da Niepoort. Anna Costa
A Pisca nasceu no Dão e anda com Daniel para todo o lado, tem o nome da sua vinha preferida (no Douro). Anna Costa
Todas as quintas da empresa, e esta foi a última, estão certificadas em modo de produção biológico, mas também há já algumas práticas de biodinâmica. Anna Costa
Daniel Niepoort com o encarregado António Mendes, filho do antigo caseiro da quinta, o enólogo Sérgio Silva e a burra Tita. Anna Costa
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Dirk visitou pela primeira vez a Lomba em 2014, com o filho Daniel. Não estava à procura de comprar uma quinta no Dão, mas não podia deixar que se perdesse. Anna Costa

Ficou ele, e ficou Daniel. Há dois anos e meio em Portugal, é no Dão que passa mais tempo. “Recuperámos a vinha velha e replantámos as falhas. Também plantámos uma pequena parcela em altitude, Bical e Cerceal. Usámos os garfos da vinha velha”, explica, sempre sublinhando que ali tentam não falar muito em castas e que as parcelas “são uma mistura muitas vezes”. Na Lomba, também há Encruzado. Alguma Baga, “Tinta Pinheira e outras coisas esquisitas”, completa o pai.

“Gosto muito do Dão. Podia viver aqui. Há duas semanas [em Julho], numa prova às cegas, apresentei um vinho do Dão de 1978 que temos na adega e um Borgonha de 2011 e metade das pessoas disse que o vinho português era mais jovem. E melhor. Mas tínhamos pessoas do Dão que não acreditavam que o vinho fosse do Dão”, conta Daniel, que faz questão de acompanhar de perto os 27 viticultores com quem trabalham na região (ao todo, são 250 os viticultores a quem a Niepoort compra uva nas três regiões onde tem quintas).

Castas: baralhar e dar de novo

Para Pedro Pereira, enólogo da Adega Cooperativa de Vila Nova de Tazem – ainda em Gouveia e uma das quatro cooperativas que restam das 11 de outrora na região –, o que falta ao Dão é “chegar ao coração e à carteira dos consumidores”. “Muitos reconhecem o Dão como Touriga Nacional e Encruzado. Está na altura de mudar isso”.

Falámos durante um almoço, com a equipa da Niepoort, para o qual o enólogo levou um Jaen de 1995 e um branco de 1997, “provavelmente Bical, Cerceal e Dona Branca”, ambos da cooperativa onde trabalha há 25 anos. “Quando lemos os registos de 1980 e 1990, percebemos que não havia muito Encruzado e não era por isso que não se faziam grandes vinhos”.

De facto, no cadastro vitícola de 1986 (feito pelos classificadores, parcela a parcela, e referente aos 17 anos anteriores), o Encruzado – de que tanto se fala hoje – representava apenas 1,8 por cento do encepamento. Nas castas brancas, dominavam a Malvasia Fina e a Bical. Antes, no final do século XIX (os primeiros registos conhecidos são de 1865, como nos dá conta Vanda Pedroso), a casta-rainha do Dão era a Touriga Nacional, variedade que em 1986 tinha já apenas 5 por cento de expressão na região. Nos anos 1980, a Baga dominava com 43 por cento. E a seguir, com maior expressão, havia Jaen, Tinta Amarela e Tinta Pinheira. Tudo castas produtivas.

O que aconteceu, entretanto, a essa distribuição? Segundo dados enviados pela Comissão Vitivinícola Regional (CVR) do Dão ao Terroir, hoje as castas mais plantadas na região são o Jaen (13,2 por cento), a Baga (11 por cento), a Touriga Nacional (8,3 por cento) e a Tinta Roriz (6,5 por cento). As brancas só aparecem a partir do quinto lugar: Malvasia Fina (3,7 por cento) e Fernão-Pires (2,8 por cento). A lista tem 18 variedades, o Bical e o Encruzado surgem em 11.º e 12.º lugares, com 1,7 e 1,4 por cento, respectivamente. Castas com menos de 0,3 por cento de expressão não aparecem sequer listadas.

Para além das castas, também “os sítios indicados para a vinha” estão a mudar. “Estão a passar para outras altitudes”. “A questão da altitude é importante, sobretudo hoje, com as alterações climáticas”, reconhece Pedro Pereira, o enólogo da cooperativa de Tazem. E reconhecem todos aqueles com quem falámos nesta reportagem. Próxima paragem: Nelas.

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