Falta de médicos nas urgências. Um terço dos internos de ginecologia/obstetrícia assinou carta enviada à ministra

Sindicato independente dos Médicos diz que dos 281 internos da especialidade, “cerca de 100 já assinaram a carta” na qual dizem que vão entregar escusas de responsabilidade sempre que as escalas não cumpram o que está definido em regulamento.

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Internos irão entregar minutas de escusa de responsabilidade sempre que as escalas não estiverem de acordo com o regulamentado BENOIT TESSIER

Um terço dos médicos internos da especialidade de ginecologia/obstetrícia já assinaram a carta enviada à ministra da Saúde, na qual informam que irão entregar escusas de responsabilidade sempre que as escalas de urgência não cumpram o definido no regulamento e minutas de recusa de realização de trabalho extraordinário acima das 150 horas anuais definidas por lei. Desde o início do ano, a Ordem dos Médicos já recebeu 269 pedidos deste tipo por parte de clínicos de várias especialidades.

Em declarações ao PÚBLICO, o secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM) adiantou que “dos 281 internos de ginecologia/obstetrícia [dos vários anos de formação], cerca de 100 já assinaram a carta”. “Mas a todo o momento temos mais colegas a assinar”, disse Jorge Roque da Cunha, referindo que a carta foi enviada esta terça-feira à ministra da Saúde. Oficialmente, até ao momento, ainda não houve uma resposta por parte do ministério.

Na carta, divulgada publicamente pelo SIM, os internos informam que, por considerarem “as medidas até hoje aprovadas são insuficientes para a resolução das dificuldades sentidas diariamente na prestação de cuidados” irão entregar, a nível individual, junto das administrações hospitalares minuta de recusa de realização de mais de 150 horas extraordinárias por ano e/ou minuta de recusa de realização de mais de 12 horas, a título de trabalho suplementar, a cumprir num único período, em cada semana de trabalho.

Informam igualmente que irão entregar minutas de escusa de responsabilidade sempre que estiverem destacados para trabalho em urgência e as escalas não estiverem de acordo com o regulamento que define a constituição das equipas médicas nos serviços de urgência.

Roque da Cunha salienta que estas declarações são individuais, mas admite que um número muito semelhante ao de internos que já assinou a carta terá remetido as minutas de recusa de realização de mais horas extras além das previstas na lei e que também não andará longe o número de internos a entregar escusas de responsabilidade. “A esmagadora maioria dos locais tem dificuldade na constituição das equipas”, diz, recordando que o sindicato já entregou propostas ao Ministério da Saúde relativas à organização do trabalho médico, incluindo nas urgências.

Questionado sobre se a carta pode contribuir para o aumento de ansiedade das grávidas, o dirigente do SIM afirma que esta atitude dos internos “é na defesa dos cidadãos”. “Mesmo que as escalas sejam insuficientes, os médicos não deixam de ir. Sabendo o Ministério da Saúde que a situação é complicada, tem aqui mais um incentivo para ultrapassar os problemas de forma célere. A ansiedade criada é responsabilidade do ministério, porque tem andado a protelar o problema.”

Já sobre se esta iniciativa pode ser replicada por internos de outras especialidades, Roque da Cunha refere que a insuficiência de elementos acontece também nas escalas de medicina interna, pediatria e anestesiologia. E, por isso, admite que internos de outras especialidades possam tomar atitudes semelhantes “para defenderem os seus doentes”.

O presidente do Colégio de Ginecologia/Obstetrícia da Ordem dos Médicos alertou, em declarações à Lusa, que o não cumprimento do regulamento das equipas nos serviços de urgência, apontado pelos médicos internos que apresentaram escusas, pode levar à retirada da idoneidade formativa. “A questão de se exceder as horas extra de trabalho previstas [150 por ano] e a eventualidade de poderem não estar acompanhados é fundamental para a Ordem e para os colégios”, disse João Bernardes.

“Nós somos a ponta de um icebergue”

O problema do excesso de horas extraordinárias e da limitação de elementos nas escalas das urgências “é o cenário com que o SNS tem vindo a trabalhar nos últimos e que consecutivamente tem vindo a agravar-se”, diz Luísa Andrade Silva, médica interna de ginecologia/obstetrícia no Hospital de Setúbal e uma das subscritoras da carta enviada à ministra da Saúde.

“Enquanto grupo independente, que quis manifestar a suas preocupações, encontrámos esta forma de fazer ver aos nossos decisores políticos que as medidas que estão a ser propostas são bastante insuficientes, que este é um problema enraizado no SNS. Isto não é um problema de ginecologia/obstetrícia, nós somos a ponta de um icebergue”, afirma a médica, que ultrapassou as 150 horas extras anuais em Março.

Por essa razão, entregou a minuta para a não realização de mais horas extraordinárias. Nos primeiros seis meses deste ano, revela, fez 400 horas extras só na urgência. Contabiliza outras cerca de 150 na área assistencial, mas essas não são remuneradas. Contas feitas, as horas suplementares que fez só na urgência, e descontando as férias já gozadas, traduzem-se “numa média de 66,8 horas por semana”, com uma remuneração de 8 euros à hora.

Acrescenta que todas as urgências “têm inúmeros médicos” a fazer horas extras e que aquilo que começou como sendo a excepção — “em que íamos cobrindo um turno extra sem prejudicar a nossa formação, e no caso dos especialistas sem prejudicar a sua actividade assistencial” , “tornou-se ao longo dos anos na norma”. “O debate em cima da mesa por parte do Ministério da Saúde é sobre as horas extraordinárias e é com isto que estamos extremamente descontentes”, diz.

“Quem está ocupado a assegurar escalas de urgência não está a operar, não está a fazer consultas, não está a ver doentes na enfermaria”, salienta. “Queremos um SNS pela população e por uma carreira no futuro”, acrescenta Luísa Andrade Silva.

Mais pedidos de escusa de responsabilidade

O bastonário da Ordem dos Médicos também reagiu a esta carta em declarações à RTP3, referindo tratar-se da “ponta o icebergue” e que as escusas de responsabilidade funcionam como “um grito de alerta, mas sobretudo como uma denúncia de que as situações não estão bem”.

Num balanço feito ao PÚBLICO, a Ordem dos Médicos revela que desde o início do ano “já recebeu 269 pedidos” de escusa de responsabilidade de clínicos de várias especialidades. “A maioria dos pedidos surgiu de médicos que trabalham na região de Lisboa e Vale do Tejo (164). Da região Norte chegaram 56, do Centro 28 e do Algarve 21.”

A Ordem ressalva que podem existir mais pedidos de escusa além destes, já que outros terão sido feitos directamente aos hospitais, secções regionais ou ao conselho regional, não tendo a Ordem acesso directo a esses registos.

Quanto a comparações com os dois anos anteriores e apesar desta ressalva, que é válida para os vários anos , os valores de 2022 são já muito superiores. Em 2021 chegaram 184 pedidos à Ordem e em 2020 foram 193.

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