O esvaziamento do SNS: o caso paradigmático do serviço cirúrgico de um hospital do Porto

A Lei de Gestão Hospitalar de 1988, e as suas alterações subsequentes (empresarialização dos hospitais), veio criar o sistema clientelar de nomeação em cascata de todos os cargos de gestão e direção técnica. Criou-se uma estrutura de apparatchiks, de gestores subservientes

Nunca como agora o SNS revelou tantas fragilidades. Como se chegou a esta situação? Adianto, na minha ótica, três explicações a partir de um caso recente, dos muitos que ainda não vieram à tona. Penso ser um caso paradigmático do que me parece estar na base do mal geral que tem vindo a esvaziar o SNS dos seus melhores quadros e a, deste modo, a fragilizá-lo de morte.

Há alguns meses, um serviço cirúrgico de um hospital do Porto, em tempos um serviço tecnicamente desenvolvido e altamente prestigiado, tinha cinco cirurgiões. Dentro de um mês, o serviço ficará apenas com o seu diretor. Os demais médicos, em menos de um ano, rescindiram os seus contratos. Porquê? Em geral, por falta de condições de trabalho e de perspetivas técnicas de desenvolvimento do serviço e uma direção de serviços fraca; quatro cirurgiões para irem trabalhar para o setor privado; um, para concorrer a outro hospital. Todos, sem exceção, médicos altamente classificados. Estamos a falar de uma das especialidades mais procuradas, sobretudo num hospital central, a que só acedem os melhores classificados nos concursos médicos.

Ao que sei, todos gostariam de continuar a trabalhar no SNS, se para tanto vissem perspetivas de melhoria das condições de trabalho e melhores remunerações. E gestores minimamente interessados em desenvolver o serviço. Perante a saída de todos os cirurgiões do serviço (repito: todos!), desde o diretor do serviço ao conselho de administração, passando pelo diretor clínico e respetivo diretor de departamento, nenhum destes “gestores” esboçou um movimento, apresentou qualquer proposta, avançou com alguma solução, informou a tutela para a grave situação criada.

O serviço tem uma lista de espera cirúrgica de mais de 200 doentes. Limitaram-se (todos os “gestores") a encolher os ombros. Quando muito, pensam vir a pedir, em próximo concurso, a abertura de vagas, convencidos que haverá sempre quem queira aceitar as condições e as remunerações que os médicos que acabaram de sair entenderam não querer continuar a aceitar.

Analisando este caso, nele podemos encontrar algumas explicações para a evolução de esvaziamento e fragilização progressiva que o SNS tem vindo a sofrer, desde 1988.

1.º A Lei de Gestão Hospitalar de 1988, e as suas alterações subsequentes (nova lei de gestão de 2002; empresarialização dos hospitais), veio criar o sistema clientelar de nomeação em cascata de todos os cargos de gestão e direção técnica. Criou-se, desde então, uma estrutura de apparatchiks, regra geral, de gestores subservientes, que, em momento algum, ousa destoar da hierarquia ou da tutela, propondo soluções realistas que contrariem a progressiva degradação dos serviços de saúde. Quantos conselhos de administração, diretores clínicos, diretores de departamento, diretores de serviço de serviços de ação médica têm sido vistos a criticar publicamente o estado de degradação a que o SNS chegou? Apenas se veem os sindicatos e os chefes de equipa de urgência a dar a cara como se o problema fosse só das Urgências. A falta de gestores à altura da sua responsabilidade é um mal que afeta muitos serviços de saúde hoje. “Um fraco rei faz fraca a forte gente”, já dizia Camões.

2.º O Estatuto do SNS de 1993 (DL 11/93, de 15 de janeiro) veio dar ao Estado e ao SNS poderes, em alguns casos significativos, de gerirem contra os seus próprios interesses, ainda que, eufemisticamente, a coberto da expressão “com fundamento em razões de interesse público”.

  • a) O poder de fornecer recursos humanos ao setor privado, a custo zero, em especial médicos, formados e treinados pelo Estado/SNS, sem qualquer prejuízo para os profissionais que viessem a ser contratados pelo setor privado. Por exemplo, a possibilidade de estes profissionais poderem continuar a descontar para a Caixa Geral de Aposentações, a beneficiar da ADSE, a sair com uma licença sem vencimento especial (até dez anos, com possibilidade de regresso ao hospital de origem, em qualquer altura, com ou sem vaga no quadro);
  • b) o poder de virem a ser criados (como vieram) seguros alternativos de saúde (até então inexistentes), como (mais uma) fonte de financiamento do setor privado;
  • c) o poder de entregar, nomeadamente ao setor privado, mediante contrato de gestão, a gestão de instituições serviços públicos de saúde (caso, por exemplo, do Hospital Amadora-Sintra e várias PPP-Parcerias Público-Privadas).

Estes novos poderes estiveram na base da criação e florescimento do setor privado da saúde, hoje, claramente mais concorrencial do que complementar do SNS, em especial quanto à maior capacidade de atração de médicos, sobretudo dos mais capacitados. A um ponto tal que o SNS deixou de ter (ou corre o risco de vir a perder), em muitas especialidades, capacidade formativa, que o setor privado, agora, também, já reivindica.

3.º A Nova Gestão Pública (New Public Management), filosofia de gestão pública de cariz neoliberal, com origem no Reino Unido de Margaret Thatcher, ao introduzir regras de gestão privada no SNS (contratos individuais de trabalho; código do trabalho ao invés de legislação especial; inscrição na segurança social ao invés da Caixa Geral de Aposentação; cessação do direito de inscrição na ADSE; estagnação ou cessação das carreiras) veio igualar os direitos e deveres dos novos trabalhadores em funções públicas com os direitos e deveres dos trabalhadores do setor privado, facilitando, também aqui, a mobilidade dos médicos, em especial dos médicos mais qualificados, para o setor privado. Em igualdade de condições (ceteris paribus), qualquer médico prefere, obviamente, trabalhar onde lhe oferecem melhores regalias e remunerações mais elevadas.

Chegamos, assim, a uma situação em que, das duas uma: (1) ou o SNS continua a governar contra si próprio, como tem feito de há cerca de 30 anos para cá e a meter a cabeça na areia, nada fazendo para contrariar a situação, correndo o risco de definhar de vez; (2) ou o SNS decide, de uma vez por todas, alterar a situação e sobreviver. Para tanto, desde logo, deveria, em minha opinião:

  • a) alterar a forma de nomeação dos seus gestores: dos conselhos de administração (logo que possível), dos órgãos de direção técnica (direção clínica) e de direção de serviços clínicos (todos estes, de imediato, com novos critérios de nomeação quanto às novas nomeações a efetuar, por meio de concursos internos ou externos acima de qualquer suspeita, por dois mandatos apenas, de três anos cada);
  • b) avançar, de imediato, com o regime de exclusividade, ao menos em setores de atividade estratégica prioritários (serviços cirúrgicos, p. ex), com modelos atrativos de remuneração (ordenado-base concorrencial e incentivos), dando poderes excecionais aos conselhos de administração, para, “por urgente conveniência de serviço”, convidar os médicos entretanto saídos, sem qualquer outra formalidade, a regressarem aos seus lugares nas novas condições;
  • c) isentar em sede IRS todo o trabalho extraordinário feito pelos médicos dos hospitais nos Serviços de Urgência.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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