A irresponsabilidade do Ministério da Administração Interna e de quase todos os partidos no voto dos emigrantes

A partir do dia em que se eliminar a exigência de cópia de BI/CC, nunca mais teremos grandes certezas sobre o voto dos emigrantes e a democracia sofrerá com isso. Em território nacional, nas eleições, os eleitores também não se identificam?

1. O total de 157.205 votos de eleitores no círculo da Europa foi anulado e o Tribunal Constitucional, com a sua argumentação, deu razão ao PSD. Foram anulados porque os membros das mesas de voto violaram a lei, com a conivência de todos os outros partidos e os seus delegados. Recapitulando…

2. No dia 18/1/2022 a Secretaria Geral do Ministério da Administração Interna (SGMAI) convocou os partidos (mas não a Comissão Nacional de Eleições - CNE) para lhes apresentar o modo como estava a pensar organizar o processo de contagem dos votos dos emigrantes (número de mesas, escolha de membros de mesa, local da contagem, etc.). A certo momento, estando ausentes os responsáveis da SGMAI, o PS e o BE colocaram em cima da mesa a questão dos votos que poderiam não vir acompanhados de cópia do BI/CC, elemento que a lei eleitoral exige no seu artigo 79.º-G, n.º 6. Nessa reunião, todos os partidos, com a informação precária de que dispunham, acordaram validar esses votos, dado que na eleição de 2019 tinham existido problemas. Este foi um dos temas abordados, além da nomeação de pessoas para a função de membros de mesa. Foi elaborada uma ata dessa reunião que foi entregue ao MAI.

3. O PSD confirmou após esta reunião que o acordado pelos partidos era ilegal porque violava a lei eleitoral e os partidos não tinham o poder de deliberar que podiam dispensar a cópia do BI/CC dos eleitores emigrantes. O mesmo veio a dizer o Tribunal Constitucional (TC), quando no seu Acórdão 133/2022 escreveu; “(…) Qualquer ‘deliberação’ - ou, melhor dizendo, acordo informal – que tenha sido tomado pelos partidos políticos no sentido de dispensar a junção de cópia do documento de identificação ao boletim é grosseiramente ilegal (…)”.

4. No dia 4/2/2022 voltou a existir outra reunião, convocada pela SGMAI, onde estiveram presentes os partidos e a CNE. A reunião visava informar os partidos sobre questões logísticas, na sequência da primeira reunião. O PSD aproveitou para alertar que não ia acompanhar o entendimento dos partidos tomado na reunião de 18/1 por ser ilegal. Errar é humano, o que não é humano é sabendo que se está em erro seguir em frente em direção ao precipício da ilegalidade, colocando em causa as eleições. Foi o que fizeram todos os outros partidos, não o PSD.

5. A CNE secundou a posição do PSD na reunião de 4/2, contrariando a pretensão ilegal de todos os outros partidos. A CNE emitiu em 3/2/2022, inclusive, um parecer no sentido da nulidade dos votos sem BI/CC, que publicou no seu site.

6. A SGMAI elaborou um manual de instruções para os membros das mesas de voto, aproveitando um entendimento da CNE de 2019 (composta então por outras pessoas), que induziu ao cometimento da ilegalidade eleitoral por parte das mesas. Mas não tomou nenhuma iniciativa, sabendo até do parecer da atual CNE de 3/2/2022, reiterado na reunião de 4/2, que tinha voltado a esclarecer a questão, para que as mesas cumprissem a lei.

7. No dia da contagem dos votos, dias 8 e 9 de fevereiro, o PSD constatou que inúmeras mesas estavam a violar a lei ao não invalidar votos que não tivessem cópia do BI/CC. Em sequência, apresentou protestos, conforme possibilita a lei. As mesas deliberaram sobre os protestos do PSD desconsiderando-os. Em seguida, o PSD apresentou novos protestos pedindo que os votos inválidos fossem separados e não misturados, como determina a lei sobre votos reclamados, para que existisse uma decisão posterior por quem de direito. A generalidade das mesas voltou a decidir em contrário, misturando todos os votos – os válidos e os inválidos – levando à contaminação de todo o processo eleitoral e à afetação da sua integridade, como viria a afirmar o TC.

8. Chegados às Assembleias Gerais de Apuramento, presididas por membros da CNE, com a participação também de um juiz desembargador em cada uma, na Europa foi cumprida a lei e declarados nulos todos os votos que tinham sido misturados, por ser impossível saber quais os validamente expressados. Assim, porque muitas mesas ilegalmente tinham misturado tudo.

9. Fora da Europa, a AG de Apuramento decidiu diferente. Esta era presidida pelo representante do MAI para esta CNE, fazendo parte também de um gabinete ministerial como nomeado político. Ao contrário de outros membros da Comissão, não foi eleito para esta. Fora da Europa, todos os votos que tinham sido separados – os inválidos/sem BI/CC –foram considerados nulos. Já no caso dos votos que tinham sido misturados – válidos e inválidos/sem BI/CC – foram todos contabilizados. Que coerência! (ironia).

10. A separação dos votos sobre os quais havia dúvidas pelas mesas era essencial para permitir o direito ao recurso para as instâncias superiores. Ao misturarem os votos válidos e inválidos as mesas impossibilitaram esse recurso, que está previsto na lei eleitoral.

11. O PAN, o CH, o Livre e o Volt impugnaram a eleição da Europa pedindo que todos os votos considerados nulos por não virem acompanhados do BI/CC fossem considerados válidos. O TC decidiu em contrário, afirmando inequivocamente que quanto à exigência da cópia do BI/CC “o legislador pretendeu seguramente reforçar a fidedignidade do voto, uma vez que nada assegura que a recepção da remessa seja feita pelo destinatário, podendo, por exemplo, ser recebida por quem resida no mesmo local e a tenha aceite”. E é muito avisado o apontamento do TC, porque nada garante que os votos se percam por aí e alguém, que não o eleitor, vote por ele. Chegaram a existir relatos de situações muito estranhas nestas eleições quanto a este último ponto. Pedir cópia do BI/CC não é, assim, estapafúrdio, mas uma garantia de reforço da verdade e integralidade do processo eleitoral.

12. O que aconteceu podia ter sido evitado? Sim, se os partidos e a SGMAI tivessem cumprido a lei como o PSD queria e a quem o TC veio implicitamente dar razão. Os quatro partidos que impugnaram a eleição da Europa com vista a que os votos declarados nulos neste círculo eleitoral fossem contabilizados perderam e o TC decidiu que não tinham razão.

13. É precipitado, da parte de alguns, dizerem que querem alterar a lei para eliminar a cópia do BI/CC. A partir desse dia nunca mais teremos grandes certezas sobre o voto dos emigrantes e a democracia sofrerá com isso. Em território nacional, nas eleições, os eleitores também não se identificam? Então, porque não haverão de o fazer se forem eleitores emigrantes?

14. Como apontamento final, em face de algumas declarações feitas por estes dias, o Parlamento nunca teve a funcionar nenhum grupo de trabalho (GT) para resolver isto. O que existiu foi um GT para consolidar, sem caráter inovatório, a lei eleitoral. E este estava numa fase muito prematura dos seus trabalhos. Terminou com a dissolução da AR.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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