Le Pen, Zemmour e Marion

A discussão da rivalidade Le Pen x Zemmour tem-se focado na fragmentação do eleitorado da extrema-direita. Mas a médio ou longo prazo, um cenário, infinitamente mais sinistro, afigura-se como provável: o aparecimento de uma persona política capaz de unir os eleitorados de Marine Le Pen e Eric Zemmour em torno de um programa de “reconciliação nacional.”

Maior fragmentação, dispersão e síntese a médio prazo? É possível que estes sejam os movimentos tectónicos do eleitorado da extrema-direita francesa nos próximos meses ou anos. Expliquemos. A fragmentação do eleitorado da extrema-direita francesa não começou com Éric Zemmour. O enfant terrible da política francesa apenas a explicitou e explorou. As fissuras do Rassemblement National (RN) começaram a surgir com a estratégia de “normalização” (Leia-se: camuflagem) que Marine Le Pen iniciou.

O seu pai foi afastado da liderança, uma decisão que alienou muitos puristas da defunta Front National, que a acusaram de conspurcar o radicalismo original com o pragmatismo político. As suas propostas xenófobas e racistas foram cuidadosamente camufladas por uma linguagem formal legalista, uma espécie de politicamente correcto da extrema-direita, posto ao serviço da dissimulação ideológica. O partido mudou de nome. As diatribes nacionalistas de outrora não desapareceram inteiramente do horizonte discursivo, mas começaram a ser complementadas, e em alguns casos até suplantadas, por argumentos e propostas direccionadas à classe trabalhadora do norte industrializado e depauperado que, por boas razões, sente-se abandonada por uma extrema-esquerda cosmopolita, hipersofisticada e obcecada com trivialidades identitárias que muito têm contribuído para o ressurgimento do nacionalismo francês.

A estratégia foi bem-sucedida, apesar de Marine ter alienado boa parte dos radicais que gravitavam em torno do seu pai. Como seria de esperar, os alienados de Jean-Marie e outros juntaram-se a Zemmour recentemente. O RN de Marine é forte nos meios rurais conservadores, predominantemente no sul da França, entre os idosos, e, crucialmente, no proletariado que desertou o marxismo e abriu os braços ao nacionalismo económico e ao movimento antiglobalização da Nova Direita. Estes são os dois principais pilares sociais do seu poder político. Os seus eleitores provêm maioritariamente da classe trabalhadora rural e industrial. A sua formação académica é mediana ou baixa.

Marine nunca penetrou verdadeiramente os meios urbanos onde o “problema” do multiculturalismo é vivido diariamente no turbulento interstício dos bairros chic da classe média e dos banlieues socialmente marginalizados. É curioso notar que o argumento de que o multiculturalismo engendra problemas “civilizacionais” profundos é mais eficaz nos meios rurais onde o pluralismo cultural é quase inexistente. Nas sociedades hipermediatizadas, a percepção de uma realidade política distante pode ser facilmente transformada num credo ao serviço da mobilização política. Nada de novo.

Le Pen e Zemmour disputam o mesmo eleitorado? Sim, mas é importante não negligenciar algumas nuances cruciais. Zemmour, intelectual polémico e sofisticado, consegue persuadir eleitores jovens com formação académica superior que residem nas cidades francesas e que convivem diariamente com o suposto “problema” do multiculturalismo. Ou seja, sentem na pele a politização da questão multicultural que, como é sabido, radicaliza. Le Pen nunca conseguiu angariar o apoio desta importantíssima parcela urbana dos eleitores franceses.

Porque é que Zemmour está a ser bem-sucedido onde (centros urbanos) Le Pen falhou? Talvez tenha a ver com a sua sofisticação argumentativa e com o facto de ser uma persona mediática amplamente reconhecida nos meios urbanos. Dito isto, o que o distingue verdadeiramente de Marine Le Pen é o seu radicalismo explícito e incontido. De certa forma, Zemmour é um bizarro regresso ao passado. Parece-se mais com Jean-Marie Le Pen do que com Marine. O seu extremismo chocante, liberto do ónus da acusação de inautenticidade que acompanha a camuflagem política, é, na minha opinião, a sua mais eficaz e repugnante arma política. A sua agressividade sugere autenticidade e lealdade ideológica. Um eleitor francês, numa entrevista concedida a um canal televisivo disse o seguinte: “Ele (Zemmour) diz mesmo o que pensa, podemos saber com o que é que contamos.” Seja como for, é verdade que Zemmour dividiu o eleitorado da extrema-direita, mas também é verdade que o expandiu significativamente, especialmente no mundo urbano onde os convertidos já são muitos.

A discussão em torno da rivalidade Le Pen versus Zemmour tem-se focado quase exclusivamente no tema da fragmentação do eleitorado da extrema-direita, porque este facto será particularmente importante no duelo eleitoral que se aproxima. Todavia, se alargarmos o prisma temporal para o médio ou longo prazo, um outro cenário, infinitamente mais sinistro, afigura-se como provável. Refiro-me ao aparecimento de uma persona política que seja capaz de unir os eleitorados de Marine Le Pen e Zemmour em torno de um programa de “reconciliação nacional.”

De acordo com as mais recentes sondagens, o total do eleitorado da extrema-direita (Le Pen e Zemmour) é de cerca de 30%, um número superior aos 24% de Macron (primeira ronda). Não me parece que Marine Le Pen ou Zemmour possam levar a cabo esta vil síntese depois das eleições. O grau de animosidade existente entre ambos impossibilita tal façanha.

Marion Marechal Le Pen? Certamente, apesar de (felizmente) já ter cometido o erro de se aliar a Zemmour. A curto prazo, é possível que o conflito entre Marine Le Pen e Zemmour induza muitos a acreditar que, bem vistas as coisas, Marine não é tão radical como se julga. Há poucos dias, a tia de Marion, furibunda, acusou Zemmour de ser um “nazi”. O extremismo de Zemmour poderá fazer com que Marine pareça uma inócua conservadora da velha guarda.

A intensificação do conflito entre ambos poderá beneficiar Le Pen e, claro, prejudicar Valérie Pécresse, a candidata de Os Republicanos. Esta é uma possibilidade altamente improvável, sem dúvida, mas nos dias que correm, nada parece impossível. Parece-me importante não confundir a actual fragmentação do eleitorado da extrema-direita francesa como uma debilidade que se prolongará no tempo. A bem da verdade, trata-se de uma perigosa dispersão do extremismo nacionalista que certamente aguardará pacientemente por uma oportunidade de redenção.

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