Distraídos, desastrados, desorganizados

Normalmente, os três D’s são condições que se carregam em conjunto e penosamente, como o rapaz carregava a mala, a mochila e o saco. São um pacote completo. Pague um, leve três.

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"Admiro quem consegue viajar impecavelmente com bagagem imaculada onde cabe tudo sem necessidade do saco suplementar" L.Filipe C.Sousa/Unsplash

Um rapaz corre pelo aeroporto, ofegante e perdido. Equilibrado em cima da sua mala de rodinhas está um saco de plástico que cai ao chão com a velocidade da corrida. Leva o passaporte na boca, a mochila entreaberta presa por uma alça a baloiçar, o blusão de rojo a prender-se nas rodas da mala, travando-lhe o embalo em solavancos. Sorrio-lhe, como as grávidas se entressorriem quando se cruzam na rua. Não pela sintonia de os dois carregarmos um feto, mas porque carregamos um mesmo fardo: somos distraídos, desastrados e desorganizados. As três coisas estão interligadas. É possível encontrar alguém que possua apenas uma ou duas destas características, mas incomum. Normalmente os três D's são condições que se carregam em conjunto e penosamente, como o rapaz carregava a mala, a mochila e o saco. São um pacote completo. Pague um, leve três. A distracção pressupõe um desencontro entre corpo e mente que nos fará tropeçar na vida. Metafórica e literalmente.

Admiro as pessoas organizadas como admiro os desportistas de alta-competição. Sei que são da minha espécie, em tempos sonhei vir a desempenhar tais proezas, mas já desisti de acreditar que algum dia atingirei o seu estado.

Admiro quem consegue viajar impecavelmente com bagagem imaculada onde cabe tudo sem necessidade do saco suplementar ou de convocar familiares para se sentarem em cima da mala para tentar correr o fecho com ânsia e fervor de dérbi futebolístico. Admiro quem consegue ouvir uma indicação de caminho e não divagar meio segundo após aquela começar. Quem consegue conservar um cartão de cidadão durante anos ou sair de casa de uma vez só, sem regressos sucessivos para buscar objectos esquecidos. Quem está num jantar e se sustenta lá, sem dar por si a recordar uma conversa de uma tarde de 2003. Quem mantém a cabeça e o corpo num mesmo lugar.

Não é fácil ser assim. Esta é a conclusão a que chego quando dou por mim a atravessar a ponte, por engano, pela terceira vez num dia, sendo que queria ir de Santos para Odivelas. Choro e prometo que vou mudar. Eu vou mudar. Une-nos, a quem é distraído, desastrado e desorganizado, a certeza imperiosa de que temos de mudar. Sabemos que não podemos continuar assim. Esta promessa é sempre repetida com veemência no auge da culpa: quando nos deparamos com a roda do carro bloqueada, quando recebemos reprimendas pelos atrasos, ou quando estamos em filas intermináveis para a segunda via da carta de condução.

Por vezes, não aguentamos o peso de tanta culpa ao longo de uma vida, e tentamos aliviá-la, atribuindo-a disfarçadamente à tecnologia. O maléfico GPS, o pérfido despertador, a maquiavélica máquina Multibanco que engoliu sem misericórdia o nosso cartão, após termos digitado três vezes o código de desbloqueio do telemóvel. “A máquina comeu-me o cartão...” Usamos estas desculpas em voz passiva, de cabeça baixa, como lenitivo, na esperança de que o funcionário da respectiva repartição burocrática não nos massacre com mais questionamentos e finja que compra a nossa história, como um adulto finge acreditar no Pai Natal.

Desengane-se quem acha que não pagamos o preço pela nossa condição. Pagamo-lo, literalmente, em multas. Como se não bastasse o preço que pagamos e a autopunição, ainda temos de sentir na pele a penalização silenciosa dos outros. Dos organizados. Sentimos a sua pressão quando carregamos uma travessa com arroz de pato ou com um pudim. Sabemos no que estão a pensar.

São eles que nos despertam do nosso marasmo contemplativo ante o penteado de algum candidato eleitoral no cartaz da rotunda, com as suas buzinadelas impiedosas.

Eles olham-nos com a altivez de quem encara as burocracias sem medo. De quem jamais deixou de abrir uma carta, de quem jamais deixou expirar a Via Verde, de quem envia sempre os anexos no e-mail.

Eles, que nunca perceberão o flagelo que é a separação dos auriculares ter duplicado a probabilidade da sua perda. Eles, que concluem uma tarefa que começaram, eles, que abrem as mensagens e respondem logo.

Eles, que contam consigo mesmos e com a sua forma ordeira e atempada de agir, e que não sabem o que é ter de contar com a benignidade de semáforos verdes, de Santo António, de Deus Nosso Senhor.

Eles, que não sabem o que é ajoelhar-se à porta de casa num desespero de confessionário, e despejar a carteira ao contrário, em busca desaforada da chave.

É certo que há quem se compadeça de nós, com condescendência quase maternal. Ajeitam-nos as golas, desamarrotam-nos os papéis, correm para nos entregar coisas que deixámos em bancos de jardim. Mas também acontece apanharmos pela frente os punitivos, os que nos advertem e não perdem a oportunidade de cobrar com juros, em ímpetos condenatórios de troika, os sádicos: “Se tivesse chegado mais cedo…”

Gostaria de ter um final feliz e romantizado para isto. Uma mensagem de esperança para todos os que, como eu, andam aos tropeções pela vida, a fazer do prazo, atraso, e da obrigação, procrastinação. Não acho que daqui se retire muita coisa para além de stress e prejuízo.

Com sorte, enquanto esperamos que os bombeiros nos venham abrir a porta, pode ser que venha uma ideia. De uma situação penosa que vivenciámos, pode ser que venha uma boa história. E pode ser que encontremos no bolso do casaco um chocolate que ali deixámos no passado, um mimo auferido pelo esquecimento, um pequeno consolo que nos adoça a espera e nos faz acreditar que, afinal, nem sempre é assim tão amargo sermos como somos.

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