A paixão é uma trip de cogumelos

A paixão é um estado que desencadeia reacções semelhantes a tantas drogas e tem uma capacidade prodigiosa de toldar o juízo.

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"Se o estado de paixão fosse o nosso estado normal, não teríamos amigos" freestocks/Unsplash

Há um episódio do livro Anna Karenina no qual duas personagens, Serguei Ivanovitch e Varienka, que se amam e querem juntar-se, se encontram, finalmente, a sós, num bosque, sob o pretexto de irem apanhar cogumelos. Aquela era uma oportunidade raríssima para estarem os dois e o único instante possível para anunciarem o seu amor e tomarem um novo rumo para as suas vidas. Ivanovitch, concentrado e nervoso, vai repetindo na sua cabeça a declaração de amor e o pedido de casamento para a sua amada. Chegado o momento, após um silêncio angustiante, ele finalmente abre a boca, e pergunta:

“- Como se podem distinguir os cogumelos comestíveis dos cogumelos de bétula?” Ela, também desesperada, “com os lábios a tremer de emoção”, responde: “- No chapéu, quase não há diferença, mas há na haste.” E continuam, amargurados, a conversar acerca de cogumelos, incapazes de falarem do seu amor. Regressam com a sensação de que fizeram uma escolha que moldará o resto da sua vida. O tempo que poderia tê-los salvo e redefinido tudo foi gasto a falar de variedades de cogumelos. E porquê? Eles não sabem. Poder-se-ia pensar que estivessem sob o efeito de algum tipo específico de cogumelos. Mas não. Estavam sob outro efeito, o efeito de algo por vezes tão alucinogénio quanto cogumelos mágicos: a paixão. A paixão é um estado que desencadeia reacções semelhantes a tantas drogas e tem uma capacidade prodigiosa de toldar o juízo. Quem nunca deu por si na presença da pessoa por quem está apaixonado a falar sobre coisas tão absurdas quanto tipos de cogumelos? Nada como a paixão para nos fazer parecer uns idiotas.

Tchekhov dizia que “aquilo que provamos quando estamos apaixonados talvez seja o nosso estado normal” e que “o amor mostra ao homem como é que ele deveria ser sempre”. Eu estava bem tramada se fosse sempre como sou quando estou apaixonada. Sou acometida por uma violenta amnésia, a pessoa faz-me perguntas básicas como “Qual foi o teu curso?” e eu não consigo lembrar-me, não sei elaborar um único raciocínio decente, a minha voz altera-se, gaguejo e, como se não bastasse este aparato, ainda fico com a cara da cor de um tomate. Sempre foi assim e sempre foi complicado, por isso, obter a reciprocidade tão necessária para consumar uma paixão. Porque, se me considerava inteligente e desenvolta, esses atributos esfumavam-se em segundos, quando estava na presença da pessoa de quem gostava. Ao ver alguns dos efeitos secundários dos cogumelos mágicos, percebo que em pouco diferem dos do estado de paixão: aumento da pressão sanguínea e temperatura corporal; aumento dos batimentos cardíacos; desorientação e confusão mental; perda de coordenação; pensamentos desconectados; alteração da percepção do tempo, entre outros.

Clarice Lispector disse: “tenho medo da paixão”. Eu também tenho. Porque tenho medo das drogas psicadélicas e a paixão é uma trip de cogumelos não solicitada. E, se traz consigo as palpitações e o encantamento, também nos leva ao delírio e acaba por resvalar na paranóia. Ficamos obsessivos, todas as pessoas existentes deixam de ter importância, aquela passa a ser a única pessoa que interessa no mundo. Ficamos monotemáticos. A condescendência com que os nossos amigos tratam as nossas dores amorosas é semelhante à do amigo sóbrio que apenas nos ouve porque sabe que aquele não é o nosso estado normal. Se o estado de paixão fosse o nosso estado normal, não teríamos amigos. Começamos a ver sinais em todo o lado, matrículas com as iniciais da pessoa são demonstrações inquestionáveis do universo para nos unir. As redes sociais vieram ajudar a acentuar a fixação. Tornamo-nos especialistas em interpretar emojis e sinais de pontuação, vemos as stories da pessoa 343 vezes e verificamos o telefone a cada dois minutos.

O que acentua a irracionalidade de tudo isto é que, na maioria das vezes, sabemos pouco sobre a pessoa em questão. Mas move-nos uma certeza inquebrável de que é o amor da nossa vida. A mesma certeza inexplicável de compreensão do mundo que tanta gente tem durante experiências com psicadélicos. Estamos na posse de uma compreensão superior e divina da realidade. Tudo é vivido com uma intensidade febril. Ficamos inaptos para outras actividades. É um estado muito louco e, enquanto dura, temos a sensação de que ficaremos assim para sempre. E não adianta tentar forçar para que acabe, isso só nos trará o desespero de uma bad trip. Temos de esperar que o efeito passe por si. O pensamento, na tentativa de parar a paixão ou a moca, é ineficaz e contraproducente.

Quando, finalmente, passa, porque acaba sempre por passar, entramos na ressaca e juramos que nunca mais. Depois, a experiência transforma-se numa impressão remota, que recordamos com uma vaga nostalgia. Até que, de súbito e sem esperarmos, um dia, se repete tudo de novo. E lá vêm os efeitos todos outra vez. A irracionalidade, a desconexão de pensamento, as palpitações. A obsessão. A dor. Os assuntos idiotas. Porquê? Não sabemos. Não escolhemos, não controlamos. Pessoa já dizia: “O coração, se pudesse pensar, pararia.”

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