A pandemia salvou a ciência europeia do desastre?

Um problema de saúde pública à escala global acabou por deixar bem claro o quanto a ciência e a inovação importam. Em vez de um recuo, o programa Horizonte Europa acabou por engordar a aposta na investigação. Agora só é preciso definir prioridades e gastar bem o dinheiro.

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Miguel Manso

Foi com dinheiro colocado “em cima” da ciência que se faz na Europa que nasceram os projectos que nos levaram às inovadoras vacinas de ARN-mensageiro que hoje salvam vidas. A história já foi contada muitas vezes, mas agora serve como pretexto para mostrar como a pandemia pode, afinal, ter ajudado a salvar a ciência europeia. Com programas de apoio dedicados e “bazucas”, a Europa ganhou muitos milhares de milhões de euros para investigação e desenvolvimento (I&D). Mas todos sabem que o dinheiro só não chega para resolver os problemas de uma União Europeia (UE) desigual ou para tirar Portugal do lugar atrás da média nos principais indicadores.

“O Horizonte Europa [o novo programa-quadro da UE para a investigação e a inovação no período entre 2021 e 2027] esteve à beira de ser um desastre do ponto de vista do recuo em termos de financiamento nas linhas de apoio”, confirma Maria da Graça Carvalho, numa conversa com o PÚBLICO sobre o investimento europeu e nacional em ciência. Felizmente acabou por ser possível evitar os temidos cortes nas verbas porque, justifica a eurodeputada, “infelizmente tivemos uma pandemia pelo meio e foi essa crise pandémica que mostrou mais uma vez a necessidade e a importância de investir em ciência”. E assim se salvaram as negociações do Horizonte Europa, diz a ex-ministra da Ciência que foi relatora do relatório final do Parlamento Europeu sobre o anterior orçamento europeu da ciência.

A Europa tem agora no seu horizonte o maior orçamento de sempre para investigação e inovação. São mais de 95 mil milhões de euros. Podia ser mais (caso a proposta do Parlamento Europeu tivesse vingado), mas também podia ser menos (se o Conselho Europeu tivesse mantido as propostas iniciais mais baixas). Apesar de uma ameaça de um recuo nas verbas para a ciência, o novo programa para o período entre 2021 e 2027 acabou por ser reforçado num acordo finalizado em Dezembro de 2020 com o dossier a ser definitivamente fechado durante a presidência portuguesa do conselho da União Europeia, nos primeiros meses deste ano.

As eurodeputadas Maria da Graça Carvalho (do PSD) e Marisa Matias (do BE) seguem os temas da ciência de perto. Além de outros cargos e posições, ambas foram relatoras do anterior quadro de apoio (Horizonte 2020) e também acompanharam a negociação do actual orçamento para a ciência. Mas a conversa com o PÚBLICO sobre o presente e futuro do projecto europeu na área da ciência começa no passado mais recente, a presidência portuguesa do conselho da União Europeia. “Foi um semestre de muito trabalho. Falta agora a negociação com o conselho que será feita em Setembro para ficar o Horizonte Europa pronto para começar a entrar em vigor com todos os subprogramas já aprovados”, resume Maria da Graça Carvalho.

Do lado errado da história

Há pontos positivos e outros menos. “Tenho muita pena que a Comissão Europeia não vá mais longe na investigação científica da saúde”, diz a eurodeputada do PSD, insistindo numa luta antiga para criar “uma espécie de European Research Council para a saúde”. Segundo explica seria “uma grande agência financeira para gerir e coordena a investigação biomédica”, reforçando a colaboração entre os vários países. A pandemia mostrou que essa união de esforços é possível quando foi preciso tratar da compra de vacinas mas também houve aqui uma oportunidade perdida, acredita. A pandemia era um bom pretexto para criar a tal agência. “Isso não se consegue fazer país a país. Devíamos ter sido mais ambiciosos aí, mas não perdi as esperanças, o caminho é por aí”, diz Maria da Graça Carvalho. “Lá chegaremos.”

Mais do que um programa especialmente dedicado a suportar e coordenar a investigação na área da saúde na Europa, Marisa Matias destaca um outro lado da presidência europeia portuguesa: a aprovação da lei climática. A aprovação dessa lei abre novos caminhos e “implica também a criação de um painel europeu à semelhança do Painel Intergovernamental das Nações Unidas”.

Não é a lei perfeita, mas tendo em conta que esta é das áreas fundamentais dos tempos que vivemos “é melhor do que nada”, resume Marisa Matias. “Gostava que tivéssemos o melhor e não tivéssemos que andar sempre no melhor que nada, mas eu creio que com as dificuldades todas que houve para chegar a um consenso para ter uma lei climática e, tendo em conta a urgência do combate às alterações climáticas, colocaria essa tónica como um dos melhores e mais positivos resultados da presidência portuguesa na área da ciência.”
Sobre os meses mais recentes e sobre a saúde, a eurodeputada do BE lembra “a trapalhada” em relação à vacina e insiste no argumento de que o levantamento da patente teria sido útil para fazer com que as vacinas chegassem de forma mais rápida a mais países, a mais pessoas. “A União Europeia deveria ter tido um papel diferente porque acaba por estar neste momento ao lado de uma minoria, uma minoria de bloqueio, mas é uma minoria que nos coloca do lado errado da história”, argumenta.

Com tanto consenso sobre a importância da aposta na ciência e inovação, este é um dos pontos que coloca as duas eurodeputadas em desacordo. Maria da Graça Carvalho resgata o bom exemplo do financiamento de projectos que levaram de uma forma não intencional à solução das inovadoras vacinas de ARNm para lembrar que há outras coisas em jogo.

“A patente é uma protecção ao investimento em inovação. Ela [a vacina] ainda não é um produto acabado, é preciso ainda muito investimento e este é o grande motivo da protecção da inovação”, refere, considerando ainda que “do ponto vista prático ser levantada a patente não ia resolver absolutamente nada, pela complexidade que ainda existe na sua produção e pela necessidade de transferência de conhecimento para o fazer”. Aliás, no caso de outras vacinas “mais simples” como a da AstraZeneca ou da Johnson & Johnson, a eurodeputada do PSD considera que o levantamento da patente já “seria muito mais prático e eficiente”.

Um terço do horizonte é pouco

Voltem-nos para o futuro. O Horizonte Europa segue as linhas do anterior Horizonte 2020. “Tem talvez uma novidade que é em relação à inovação. Em vez de o instrumento das pequenas e médias empresas [PME], tem o European Innovation Council e a grande diferença é que este é para PME com inovação mais disruptiva”, anota Maria da Graça Carvalho. Assim, avisa, “teremos de puxar pelas nossas PME e por ideias mais inovadoras”.

A eurodeputada lembra também que o reforço para os próximos anos do financiamento da ciência que se faz na Europa e, em particular em Portugal, pode vir de outras fontes como o programa de recuperação e resiliência gerido depois a nível nacional e mesmo da “fatia” dedicada à ciência nos orçamentos dos vários países. Sobre a bazuca, Maria da Graça Carvalho conclui que o valor para a ciência e inovação não é muito elevado e o dedicado à ciência fundamental “é quase inexistente”. E apresenta as contas: “Tivemos informação da Comissão Europeia que de todos os Estados-membros, se formos somar o que é que é dedicado à ciência inovação, temos um total de 35 mil milhões. É um terço do Horizonte Europa. Tinha a esperança de que conseguíssemos um outro horizonte Europa somando o que cada Estado-membro irá dedicar à ciência e inovação.”

As duas eurodeputadas concordam que o instrumento widening, que permite o alargamento da participação dos países que têm tido menos acesso aos fundos, ajuda, pelo menos, a disfarçar as desigualdades e disparidades da ciência na Europa. Ajudou no Horizonte 2020 e espera-se que volte a ajudar agora no Horizonte Europa.

PIB, betão e doutores de Portugal

O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) de Portugal investe cerca de 40% das verbas disponíveis, na ordem dos 6,4 mil milhões de euros, em projectos com componentes científica e de inovação, especificou recentemente o primeiro-ministro António Costa. Na mesma altura disse ainda que está confiante de que será possível “elevar a despesa total de investigação e desenvolvimento (I&D) a 3% do produto interno bruto” até 2030.

Estamos actualmente nos 1,58% (dados provisórios para 2020), sendo que a média europeia está nos 2,19%. A desigualdade na ciência europeia não está só no acesso aos fundos e também resulta do investimento nacional na ciência e na inovação.

“Nós temos muito poucos países na União Europeia a ter um nível de investimento na ordem dos 3%”, contextualiza Maria da Graça Carvalho. A verdade é que se contam pelos dedos de uma mão e ainda sobram, mas também é justo dizer que há vários países que investem menos na ciência do que Portugal.

Mais uma vez, as eurodeputadas do PSD e BE concordam em vários pontos. Alinham quando se fala dos progressos que o país tem feito na formação, no número de doutorados, mas também reclamam que isso não chega porque sem a possibilidade de uma carreira científica os doutores feitos em Portugal fogem ou mudam de vida. É preciso tratar do problema do “trabalho científico precário” e assegurar que os fundos que aí vêm para a ciência (seja pelo Horizonte ou pelo PRR) sejam bem geridos e não acabam por se transformar em mais betão, obras físicas para justificar o uso dos fundos. “Temos de perceber que podem ser usados para mais do que betão e que podem ser usados pela massa cinzenta, lá está”, anota Marisa Matias, rindo com o jogo de palavras.

Mas com a conversa a atracar irremediavelmente em Portugal, não há grandes motivos para rir. Sobram os lamentos mas também há algumas ideias para soluções. O assunto é sério.

No futuro, Maria da Graça Carvalho gostava, por exemplo, de “uma maior independência do sistema científico e da avaliação científica”, uma agência independente do poder político. E a Fundação para a Ciência e a Tecnologa (FCT) não serve para isso? “Serve se tiver menos intervenção do poder político e com mais sustentabilidade”, defende a eurodeputada do PSD.

Depois, é preciso também fazer mais do que “deitar financiamento para os problemas”. É preciso criar um “ecossistema” em Portugal capaz de integrar os resultados da ciência na sociedade e economia, defende a eurodeputada. Como? Menos burocracia, mais crédito dos bancos, mais benefícios fiscais para quem investe, sugere Maria da Graça Carvalho, concluindo que “tudo isso é mais importante do que derramar financiamento no sector privado”.

“Estamos lixados”?

Nenhum das eurodeputadas questiona a necessidade de investir no sector privado. “Há áreas em relação às quais tem que se investir no sector privado, mas houve uma enorme transferência e uma redução do investimento público no sector público porque a orientação actual é mais pelos resultados”, defende Maria da Graça Carvalho. E os resultados não seriam um problema para a eurodeputada não fosse a percepção de que “não temos resultados nenhuns”. “Nem sequer há a avaliação ou acompanhamento da forma como os dinheiros são transferidos para o sector privado sem resultados. E isso é sinal de que podem estar a fazer falta algumas peças na nossa matriz científica nacional”, conclui.

E agora vem à baila a posição de Portugal no European Innovation Scoreboard 2021 divulgado no final do mês passado. A notícia do PÚBLICO confirma: a presença de Portugal no lote das economias europeias fortemente inovadoras foi sol de pouca dura. Ao fim de um ano nesse grupo, o país regressa ao pelotão das moderadamente inovadoras, caindo sete posições, naquela que é a primeira inversão na trajectória ascendente desde 2014.

Fica claro que a questão não é apenas ter dinheiro mas, mais importante, chegar a resultados. “Para obter resultados nós temos de fazer modificações estruturais na nossa sociedade e modificações que não dependem só da área da ciência e inovação. São as modificações de contexto”, refere Maria da Graça Carvalho sublinhado que vê no actual Governo “um grande entusiasmo no financiamento e não nessas reformas”.

Marisa Matias também quer ver reformas e resultados e, acrescenta, um projecto a longo prazo. A solução, nota, passa agora por pensar “para além destes dois ou três anos e não por apagar os fogos”. Algumas ideias? “Não estamos numa fase de inventar a roda. Basicamente, temos de criar as condições para ter um sistema científico nacional que seja sustentável e que tenha também uma resposta em relação àquilo que são as nossas prioridades mais centrais do momento actual”, diz, apontando os alvos para a saúde e clima.

Traduzindo, a eurodeputada do BE explica: “Se nós em Portugal vamos continuar, como sistematicamente temos feito, a olhar para o financiamento e adjudicá-lo ao período do financiamento e muitas vezes, pior do que isso, adjudicá-lo a períodos eleitorais... estamos basicamente lixados. Desculpem o meu português, mas a verdade é essa.”

Apesar dos progressos na formação e no reforço dos investimentos na ciência e inovação, a posição de Portugal não convence. Exemplos? Os indicadores no investimento na inovação nas PME mostram que o número de empregados doutorados representa 25% da média europeia, assinala Maria da Graça Carvalho. Mais: “Temos na exportação de serviços de valor acrescentado cerca de metade da média União Europeia, nas patentes temos 28% da União Europeia.”

Não temos é nenhuma resposta imediata para perceber “porque é que o nosso sector privado não está a conseguir tirar partido do investimento que foi feito nos últimos 20, 30 anos em inovação”. Isso é essencial e não pode falhar. Em resumo: “Não interessa ter o input sem ter o output.” E isso é o que devemos ter agora no Horizonte (da) Europa para Portugal.

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