Bob Dylan, um espelho de gerações

Não é fácil mergulhar no mundo de Dylan para quem não pensa sobre música conforme ela é: uma complexa variedade de dimensões, factores e elementos. Essa simbiose, pálida e sobranceira, onde os hinos e as causas pintavam a tela do quotidiano, é o socalco em que Dylan se debruça.

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Robert Galbraith

“Há homens que falam por si, há outros que falam pela sua geração.” Assim era apresentado Dylan no Live Aid de 1985 por Jack Nicholson. É muito por aí que Dylan, que cumpre 80 anos esta segunda-feira, 24 de Maio, merece páginas de jornais. Num mundo em que se escreve mais do que lê, o progresso foi sendo feito por quem se levanta, de forma mais ou menos azeda, contra a displicência da atmosfera comercial.

Filho dos anos 60, onde a sociedade era diariamente encetada com lâminas de gelo fino em novas “classes” e “consciências”, Bob Dylan apresenta-se como um dos rostos do movimento quase modernista, alicerçado na literatura, em que homens pouco dados ao optimismo da época compunham a world music — um estilo musical onde o protagonismo pertence à mensagem, onde é a melodia que faz companhia às palavras e não o contrário.

Não é fácil mergulhar no mundo de Dylan para quem não pensa sobre música conforme ela é: uma complexa variedade de dimensões, factores e elementos. Essa simbiose, pálida e sobranceira, onde os hinos e as causas pintavam a tela do quotidiano, é o socalco em que Dylan se debruça. Os tempos estavam a mudar e como profeta ele bem o sabia. Se Blowin’ in the Wind é o retrato pitoresco das questões suscitadas pelo zeitgeist acelerado e romanesco, o álbum Blood on the Tracks é o início de uma fase intimista e pessoal, pouco comum para um poeta, até então, bastante reservado.

Agónico e amargo, Dylan balbucia a desilusão amorosa que lhe havia sido imposta por Sara. A auto comiseração patente ao longo do disco — “Our conversation was short and sweet / It nearly swept me off my feet / And I’m back in the rain / Oh, and you are on dry land" — não lhe retira o respeito a que sempre foi dado, nem a elevação do carácter altruísta — “Say for me that I’m all right though things get kind of slow / She might think that I’ve forgotten her, don’t tell her it isn’t so".

Há uma elevação de carácter lenitiva ao longo do álbum, onde o narcisismo é deixado para trás à medida que a caneta vai esculpindo a próxima faixa. Acima de tudo, Dylan apresenta-nos um trabalho confessional onde as mais banais emoções jorram, como baldes de chuva, num leito poético metamorfoseado em harmonia melódica. Se há um legado dessa geração — céptica e involuntariamente endeusada — que merece um reconhecimento atempado é a recusa em virar as costas à perda, à dor e à solidão. Esse cinismo e resistência em entrar no desfiladeiro do Admirável Mundo Novo torneou a artificialidade e almofadou a prosternação dos vencidos da vida.

Mesmo pisado pelo blood on the tracks, Dylan nunca deixou de se apresentar como um verdadeiro sociólogo musical, arte a que tantas vezes deitou a mão para mostrar o seu desagrado com os Modern Times, esta era onde tudo passa e nada dura, um mundo onde já não estamos a falar, só a deixar andar — “All my loyal and my much-loved companions / They approve of me and share my code / I practice a faith that's been long abandoned / Ain't no altars on this long and lonesome road".

A discografia inesgotável de Dylan é sobre esse choque, essa cólera pacificada de quem tantas vezes interferiu no curso do mundo em cinco ou seis minutos com uma guitarra e uma harmónica. De quem tantas vezes cravou as angústias de todo um povo numa tonalidade lacónica e gongórica, de quem sabe que para se ser chamado de homem é preciso correr muitas estradas primeiro, até porque só quem aceita sangrar é capaz de se curar e conjugar a ambiguidade entre a derrota e a esperança. E essa é a vitória possível quando nos tiram o cadafalso. E se isso não for suficiente, sobra o cantar ao vento: “Idiot wind, blowing every time you move your mouth / You’re an idiot, babe / It’s a wonder that you still know how to breathe".

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