O julgamento eleitoral da pandemia

No brutal “debate” presidencial, Donald Trump troçou de Joe Biden por usar máscara. Dias depois Trump estava internado num hospital.

Nove meses antes, a 28 de janeiro, com nove casos confirmados nos Estados Unidos, Robert Obrien, conselheiro nacional de segurança do Presidente Trump, avisou-o de que o coronavírus “iria ser a maior ameaça à segurança nacional da sua presidência”, como se pode ler em Rage (raiva) de Bob Woodward. Na mesma reunião, o vice-conselheiro de segurança Pottinger acrescentou que um dos seus contactos chineses o alertara: “Não pense no SARS 2003, pense na pandemia de 1918”, a chamada gripe espanhola que matou cerca de 50 milhões de pessoas, das quais 675 mil nos Estados Unidos.

Nove meses depois, já morreram 209 mil americanos e as previsões apontam para números semelhantes aos da gripe espanhola e 40 milhões perderem o emprego.

Nos nove meses seguintes, Trump, com o apoio incondicional do Partido Republicano, falhou completamente no seu dever de proteger os americanos. Apesar de ter dito a Woodward que o vírus era muito perigoso – “transmite-se pelo ar” –, tudo fez para negar a existência da ameaça, afirmando que era “uma simples gripe”, a “gripezinha“ do seu factótum Bolsonaro.

Trump optou por se opor ativamente às medidas sanitárias propostas pelos seus especialistas e decretadas pelos governadores dos Estados, fazendo gala de não usar máscara, alimentando teorias da conspiração e propalando supostos medicamentos milagrosos. Num contexto de pandemia, em vez de valorizar a evidência cientifica e reforçar o sistema de saúde, tudo continuou a fazer para desmantelar o Obamacare e retirou os EUA da Organização Mundial de Saúde.

O que caracterizou a sua gestão da pandemia foi a indiferença de Trump à dor dos outros, o cinismo perante as mortes dos seus concidadãos. O seu narcisismo, próprio de todos os autocratas, levou-o a acreditar que era invulnerável.

Trump sabe que os americanos o vão julgar pela forma cruel como lidou com a pandemia e que a sentença lhe deverá ser desfavorável, no dia das eleições, como mostram de forma consistente todas as sondagens.

Com “a América mais fraca”, por trás da retórica nacionalista “fazer a América grande de novo”, emergiu o racismo como instrumento de poder.

O seu discurso foi sempre de raiva racista, primeiro contra “a invasão dos latinos”, depois indo buscar ao sótão da história o “perigo amarelo”, agora renomeado “vírus chinês”. Desde o assassinato de George Floyd, o seu discurso de ódio racial visou os afro-americanos que defendiam na rua os seus direitos cívicos. A retórica de Trump inspira-se nos grupos de supremacia branca, saudosistas dos tempos da segregação racial, para quem é um herói.

A estratégia de Trump de caos e raiva, que fratura a sociedade, é uma tentativa de sabotagem do ato eleitoral, chegando ao cúmulo de pedir ao grupo neofascista Proud Boys para “estarem prontos”. É a democracia americana que está em perigo e com ela o ideal democrático.

Com Trump no hospital, Biden declarou que “rezava por ele”, mostrando o seu respeito pela dignidade dos seres humanos, essencial à convivência democrática. Se mais não houvesse, tal respeito chegava para fazer dele o candidato certo para derrotar Trump.

O artigo primeiro da declaração universal dos direitos humanos, “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”, é visto por Trump e os seus apoiantes como parte da conspiração totalitária do politicamente correto (também em Portugal há quem assim pense).

O desprezo de Trump pelos direitos humanos explica a sua cumplicidade nos crimes de guerra perpetrados pelos seus amigos sauditas no Iémen, na repressão do General Sisi no Egito, ou nos crimes de Netanyahu contra os palestinianos, o seu fascínio pelos ditadores.

As próximas eleições serão sobre a gestão da pandemia e das suas consequências, sanitárias e sociais. Será assim nos Estados Unidos, mas também em todos os países democráticos e Portugal não será exceção.

Seria um erro grave querer desviar o centro do debate para as questões identitárias, mas essa é uma tentação a que muitos sucumbiram no passado e que a crise sanitária só pode tornar mais tentadora.

Não, a questão não é a de uma pretensa identidade ameaçada pelo multiculturalismo e os migrantes, mas sim como proteger a saúde dos cidadãos de um vírus que continua a matar, em particular os desfavorecidos, e quais devem ser as prioridades sociais e ecológicas dos planos de recuperação económica. Essa deve ser a agenda dos partidos democráticos, seja qual for a sua ideologia política.

 A extrema-direita irá certamente fazer o discurso racista, construir um outro ameaçador, culpando os democratas de todos os males provocados pela pandemia. Derrotá-la passa por mostrar que somos todos vítimas do mesmo vírus e que é no respeito pela dignidade da nossa humanidade comum que o podemos vencer.

É provável que para esse combate possamos contar, em 2021, com um presidente americano decente.

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