A cozinha da saudade

Deveríamos comer sazonalidade e deixar-nos ter também saudade do tempo das cerejas, dos grelos, das castanhas, dos dióspiros, das cenouras. Aprender a saudade da cozinha ajuda-nos a aprender o respeito pelo sabor dos tempos.

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Olivia Watson/Unsplash

Ainda não sabia ler nem escrever e já devorava arroz cor-de-rosa. Lembro-me da panela enorme (aos meus olhos) de arroz de polvo. Gostava tanto que, durante alguns anos, enjoei, mesmo antes de a minha irmã nascer e o provar. Desde aí, o arroz de polvo deixou de fazer parte da ementa da família.

Também não gosto muito (mas como, claro!) de puré. Apesar de o empadão cá de casa ter sido o melhor do mundo. Sobretudo aquela crosta de ovo tostada por cima. Uma delícia!

É um pouco assim nas nossas casas. Cada uma com os seus pratos, os temperos, as tradições.

Neste ano que, para grande parte de nós, foi de mais tempo passado em casa, a alimentação foi marcando alguns momentos. Novas tradições e novas formas de assinalar a passagem dos dias. Houve quem fizesse piqueniques na sala (e mais tarde no exterior), quem estipulasse dias de comer sem garfo e faca, quem combinasse partilhar o momento da refeição por videoconferência, quem viajasse pela cozinha e quem quase nela desesperasse.

Na cozinha é assim, funde-se (ou cozinha-se) um pouco do que vivemos.

Eu dei por mim a ter saudades do arroz de polvo (do qual tinha enjoado), do mel nos assados, do gelado caseiro, do empadão, do leite com chocolate no ponto certo, do cheiro a peixe fresco ao ser amanhado, da nova receita de bolo caseiro experimentada para satisfazer aquele “Apetecia-me mesmo algo doce”, da maratona de noites a descascar castanhas (com os dedos semi-queimados), do presente inesperado de um docinho trazido “lá de fora”.

Na cozinha ficam algumas saudades. Nos sabores, nos cheiros e nos momentos ficam as pessoas. Quem habita a cozinha e a casa. Quem partilha os momentos “de alimentar”.

Mas entre a cozinha e a saudade há outra aprendizagem interessante. De facto, esta intimidade da nossa vida que a cozinha espelha e que transluz identidade é-o a nível relacional, familiar e social, mas é (e deveria ser cada vez mais) igualmente, a nível ambiental e de contexto. Deveríamos comer sazonalidade e deixar-nos ter também saudade do tempo das cerejas, dos grelos, das castanhas, dos dióspiros, das cenouras. Aprender a saudade da cozinha ajuda-nos a aprender o respeito pelo sabor dos tempos. Ajuda-nos a exercitar a espera e a sentir a alegria da chegada dos figos, do tomate, da maçã, da batata nova e da cebola. Aliás, relembra-nos que se olharmos da janela (de casa, do carro, do comboio) também sentimos saudade da paisagem, da temperatura e dos odores (da maresia ou da terra molhada, por exemplo).

Da preparação e transformação que na cozinha podemos fazer, abre-se uma viagem interior e exterior de abertura aos ciclos da natureza, aos tempos, às relações e a quanto de tudo isso podemos e devemos sentir, cheirar, apreciar, saborear, partilhar. Ter saudade.

A saudade do arroz de polvo (do qual em tempos enjoei) é apenas uma transformação palpável que a saudade — tão profunda por quem é basilar na nossa vida e parte mais cedo — pode deixar. Uma saudade que chega à cozinha, não fosse esta também basilar naquilo que somos.

Contudo, sentir que a saudade e a cozinha podem estar ligadas e quanto nelas e delas podemos confeccionar é, talvez, um exercício a repensar, reaprender e reaproveitar a riqueza que a alimentação dos 3S (Sustentabilidade, Saúde e Sabor) tem na nossa vida. Uma alimentação que nos ajude no processo da felicidade.

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