A vacina vem aí!

Estas são algumas questões éticas que o espírito crítico não pode deixar de colocar à investigação da vacina contra a covid-19 e que devem esbater a esperança salvífica com que é puerilmente apresentada.

Sim, talvez, mas a concretizar-se será num futuro sem prazo e suscitando preocupações éticas legítimas hoje subestimadas.

Recordemos 1984, quando o Presidente dos Estados Unidos anunciou a vacina para o VIH/sida. Passaram 36 anos e ainda não existe. Nem sempre é possível criar uma vacina segura e eficaz contra todos os vírus. E o coronavírus não é excepção. Afinal, a primeira epidemia infecciosa de um dos sete tipos do coronavírus hoje conhecidos deu-se em 2002 (SARS-Cov, com 80% do genoma idêntico à covid-19), tendo-se propagado por 29 países, infectado 8098 pessoas e matado 774, em sete meses, com uma letalidade de 9,6%. Em 2012, um novo surto infeccioso provocado por outro tipo de coronavírus (MERS-CoV) alastrou-se a 27 países, infectando 2494 pessoas e matando 858, uma letalidade de 34,4%. E, não obstante, depois de duas epidemias e de 18 anos, continuamos sem vacina. Não será por falta de interesse, mas pelos muitos e complexos desafios que a investigação comporta.

Há estatísticas e estudos que apontam para uma taxa pouco superior a 6% de projectos de vacinas que chegam a ser comercializadas, indicando também um tempo médio de dez anos para a investigação de uma nova vacina, da fase pré-clínica ao mercado, e um custo entre 31 a 68 milhões de dólares até à fase II. Há casos mais animadores como no surto do Zika, em 2015, em que se produziu uma vacina em sete meses, a qual, todavia, não chegou à fase de ensaio clínico por se ter tornado desnecessária. O processo de criação de uma vacina é longo, de desfecho imprevisível e dispendioso.

Mesmo considerando que aquando deste surto do novo coronavírus alguns laboratórios estavam já numa fase adiantada de investigação e que os actuais recursos biotecnológicos e digitais podem aumentar as probabilidades e diminuir o tempo da criação de vacina, não há certezas que a venhamos a ter.

Então por que continuamos a ser inundados por pré-anúncios da vacina? Não se tratará de publicidade enganosa, disfarçada de notícia? Os interesses que se digladiam neste domínio são múltiplos e podem envolver ganhos de prestígio individual, mas também da equipa envolvida, da unidade de investigação em que se sediam e do próprio país, sendo que este prestígio se traduz num mais fácil acesso a valores superiores de financiamento para investigação, para além dos ganhos em bolsa, cuja proliferação de notícias optimistas inflacionam. Não se estará a criar ilusões ou hiperbolizar expectativas? É legítimo, sobretudo na situação de extrema vulnerabilidade que vivemos? Estas são algumas questões éticas que o espírito crítico não pode deixar de colocar à investigação da vacina contra a covid-19 e que devem esbater a esperança salvífica com que é puerilmente apresentada.

Mas há outras preocupações éticas que decorrem da corrida mundial para a criação da vacina. A concentração máxima de recursos humanos e técnicos nesta investigação ditou a suspensão ou termo de largas centenas de ensaios clínicos (400 nos Estados), a maioria em áreas muito sensíveis, como a da oncologia (quebra de 28% de ensaios), sistema nervoso central (14%), imunologia (8%) ou doenças genéticas (3%). Os registos indicam que 67,3% dos ensaios foram interrompidos devido à suspensão de recrutamento de pacientes, que 14,4% foram afectados pela demora de recrutamento, e que 18,4% atrasaram o seu início. Em Abril registou-se um decréscimo de 75% novos pacientes admitidos em ensaios clínicos, a maioria sem dispor de tratamentos alternativos e desesperados por serem aceites nos ensaios a decorrer como a última hipótese de sobreviverem. São muitas as patologias cuja possibilidade de tratamento está a ser adiada por vários anos; é muito significativo o atraso assim imposto à biomedicina.

Paralelamente, assiste-se a uma multiplicação de projectos de investigação relacionados com a covid-19 (a OMS regista 1816), com um amplo leque de qualidade e pertinência científica, alguns dos quais, ao abrigo da urgência reivindicada, procuram contornar os requisitos éticos estabelecidos internacionalmente para uma investigação idónea e que proteja os participantes voluntários.

E também no recrutamento de voluntários para ensaios clínicos há preocupações éticas a denunciar. O alerta deu-se em Março, com o anúncio do pagamento de 3500 libras a quem se disponibilizasse a ser infectado com uma estirpe menos agressiva do coronavírus (Hvivo, Queen Mary University of London). Hoje muitas empresas de biotecnologia entraram na fase de ensaio e pelo menos 300 estão a recrutar voluntários. A que preço? Quem são estes voluntários? Sacrificam-se pelo progresso científico, pela comunidade? Ou são vítimas da crise social? Este pagamento não é uma forma de exploração dos mais carenciados?

A bondade dos fins não legitima a contestabilidade dos meios.

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