Benjamim Pereira: um amor inteiro

A historiadora de arte Raquel Henriques da Silva começou a trabalhar com o antropólogo no final dos anos 1990 e neste texto, que dedica a colegas e amigas próximas, recorda o seu “amor, a transbordar, pela terra, pelas gentes e os saberes”.

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Rodagem de O Linho é um Sonho, documentário de Catarina Alves Costa para o Museu Francisco Tavares Proença Júnior, de Castelo Branco, com Benjamim Pereira (ao centro, deitado) como consultor Cortesia: Cláudia Freire

Só conheci, ao vivo, o Benjamim, em 1997, quando assumi o cargo de directora do Instituto Português de Museus.

A primeira aventura em que mergulhámos foi no Museu de Etnografia do Porto, instalado no Palácio de S. João Novo. Fechado desde 1992, era necessário libertar o edifício e dar destino ao que ali restava das antigas colecções. Fui lá com o Benjamim e tive extraordinárias lições de história, de geografia, de etnografia. Fora ali que, muito jovem, começara a trabalhar com os seus mestres e logo amigos Jorge Dias, Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano. A Câmara Municipal do Porto disponibilizara-nos uma espécie de reservas e o Benjamim instalou-se semanas em S. João Novo, seleccionando, limpando, salvando, transportando. 

Apaixonei-me, como toda a gente, por aquele velho senhor que tinha sempre um menino dentro dele, e que amava com amor inteiro as culturas populares portuguesas.

Foi um trabalho que fez com imenso sofrimento e revolta. Podia ter-me culpado, enquanto tutela, de não ter sido capaz de criar outra alternativa. Nunca o fez, pelo contrário,  ficámos amigos, apesar de acontecer o que ele receava: os salvados de S. João Novo, creio, não encontraram destino até agora, e o soberbo edifício mantém-se expectante para o negócio. 

Tive depois duas histórias felizes. Em 1999, estavam finalmente a terminar as últimas obras do Museu do Abade Baçal, em Bragança, e era preciso pensar numa forte exposição temporária. Chamei o Benjamim. Queria saber se ele podia pensar em alguma coisa a partir do material que, nos anos 1960, tinham recolhido sobre as Festas dos Rapazes e os Caretos. Até tinham feito filmes, segundo tinha ouvido dizer. 

Olhou para mim, a disfarçar um certo desgosto, e disse: “Oh Raquel, achas que vou fazer uma exposição no final do século com o material recolhido em 1960?” Fiquei a olhar para ele, com os meus vícios de historiadora para quem 30 anos não têm qualquer importância. “E então?”, perguntei eu. “Se quiseres, sem muito dinheiro, posso ir para lá e fazer uma colecção”, propôs. Apesar de gostar muito dele, levantei os olhos incrédula: “Mas como?”, voltei a perguntar. Os olhos dele brilharam e o entusiasmo foi crescendo: “Vou falar com os artesãos que fazem as máscaras e compro o que lá tiverem.” E eu, duvidando: “E eles, vendem?” “A mim sim”, disse com pequena modéstia. E comprou extraordinárias peças, algumas a 50 escudos, outras pouco mais. O melhor, no entanto, foi a decisão de, 30 anos depois, voltar a filmar as Festas dos Rapazes. Filmou com a [antropóloga e realizadora] Catarina Alves Costa, numa série de estadias entre 1999 e 2000, especialmente no Inverno. Cheguei a pensar juntar-me ao grupo e nunca foi possível. Mas ele ia-me contando como as Festas dos Rapazes passaram a ter raparigas e como o plástico tinha entrado nas vestes...

Mais tarde, mas logo a seguir, aceitou o repto para organizar um Núcleo do Linho no Museu Francisco Tavares Proença Júnior, em Castelo Branco. Encontrou uma senhora já com muita idade que ainda pegava no linho, do cultivo ao tear. Filmou-a, comprou objectos e fez, como sempre, uma instalação maravilhosa que introduz a vivência enérgica do trabalho no lugar incerto do Museu, sem sentimentalismo, sem saudosismo, com uma radical dignidade, simultaneamente poética e científica. E cheia, a transbordar, de amor pela terra, pelas gentes e os saberes.

O meu último encontro com o Benjamim foi por causa do Museu de Arte Popular. Ouvia daqui e dali, e predominava a mensagem de que grande parte daquele acervo era fake, comprado em circuitos menores e sem qualquer uso prévio. Ele ficou indignado. Explicou-me que havia peças menores mas havia outras maravilhosas. E, com uma memória extraordinária, descreveu-me meia dúzia delas, manifestando o maior desejo de as rever. Disse-me também que tanto o Ernesto Veiga de Oliveira como o Jorge Dias gostavam muito da colecção. Não consegui dar a volta àquele museu permanentemente ameaçado. Saí em 1997, no início de um contraciclo para os museus que depois se agravou a ponto de nem acreditarmos. Será justa homenagem ao Benjamim assinalar nos museus Abade Baçal e Tavares Proença Júnior os seus contributos. E reinstalar, com a sua museografia que nunca envelhecerá, o Museu de Arte Popular.

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