Tempos cada vez mais inflamáveis

As consequências directas e efeitos perversos da prevista greve dos 600 camionistas ameaçam lançar no caos todos os sectores económicos e sociais do país. Como se explica tamanha vulnerabilidade?

Ausente deste espaço durante três semanas, o que mais me impressionou na actualidade internacional e nacional que entretanto acompanhei foi o seu carácter cada vez mais inflamável. Inflamável em sentido figurado ou simbólico como as posições e incidentes com crescente carga bélica e envolvendo por vezes algumas das maiores potências mundiais. Mas inflamável também em sentido mais estrito e doméstico, desde os milhares de golas distribuídas às populações atingidas pelos incêndios até aos 600 filiados no Sindicato Nacional dos Motoristas de Matérias Perigosas, apontado já como protagonista da greve com consequências económicas e sociais mais graves dos últimos anos, senão mesmo das últimas décadas.

Que vivemos num mundo cada vez mais imprevisível e perigoso não era já surpresa para ninguém, mas à medida que o tempo passa – e precisamente durante as últimas semanas – essa situação tendeu a converter-se cada vez mais numa “nova normalidade”, até ao ponto de parecer estranho ouvir da boca de um dos líderes mundiais uma mensagem de carácter conciliador e pacifista. O que está na onda são as fanfarronadas do novo teatro do absurdo agora protagonizado pelo actual primeiro-ministro britânico Boris Johnson, como se toda a gente estivesse mais ou menos conformada com a porta sem saída do “Brexit”. É talvez também por isso que a saída dos Estados Unidos do tratado de não-proliferação nuclear assinado por Reagan e Gorbatchov já passa por uma “não-notícia”, depois do estilo a que nos habituou Trump (ou Putin e, porventura, em breve, Xi Jinping).

Mas regressemos a casa, onde assistimos a um fenómeno político extremamente curioso: à medida que Rui Rio parecia fazer todo o possível para aproximar o PS da maioria absoluta, a nova maldição (felizmente bem menos dramática) dos fogos – com Eduardo Cabrita enrolado nas golas – e o espectro das matérias perigosas tornaram-se um pesadelo para António Costa – que, entretanto, delegara em Santos Silva a incómoda pasta das “incompatibilidades”.

As consequências directas e efeitos perversos da prevista greve dos 600 camionistas ameaçam lançar no caos todos os sectores económicos e sociais do país. Como se explica tamanha vulnerabilidade? Pura e simplesmente não se explica, se tivermos em conta a relação de forças em presença ou as reivindicações salariais dos motoristas (traduzidas em 700 euros em 2020, 800 euros em 2021 e 900 euros em 2022), sejam quais forem as habilidades dessa típica personagem siciliana que é o advogado e vice-presidente do respectivo sindicato. É possível o país inteiro ficar refém da greve de 600 motoristas com uma profissão perigosa e manifestamente mal paga – em função dos números oficiais – sem que os responsáveis patronais e o próprio Estado tenham um papel moderador e até corrector dos factores que estão na base de um conflito com resultados desastrosos – há até quem os pinte como apocalípticos – para a normalidade da vida nacional? Depois de tantas polémicas enviesadas – em que o advogado Pardal Henriques surge sempre como personagem central – talvez fosse tempo de concluir a tempo um processo que, de um estrito ponto de vista económico (seja sindical, seja patronal), é de uma chocante irracionalidade. A não ser que este conflito “inflamável” seja apenas a parte mais visível de um mal-estar que atravessa largos sectores da sociedade – dos professores aos médicos e enfermeiros, por exemplo – e poderá incendiar-se em plena época eleitoral. Nada conveniente para quem, como o Presidente da República e o primeiro-ministro, mostra tanto apego à preservação da paz social em momentos decisivos do funcionamento da democracia.

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