A humanidade de ser mãe e refugiada rohingya

Achei, inocentemente, que missões anteriores na Serra Leoa, há um ano, e no Senegal, há três, me tinham preparado o suficiente para esta, no Bangladesh. Enganei-me

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Catarina Rabanada

Passou uma semana desde a minha chegada ao Hope Field Hospital for Women, no subcampo 4 de refugiados rohingyas em Ukhia, no distrito de Cox's Bazar, no Bangladesh. Enquanto expressões como “crise de refugiados” enchem páginas de jornal, a minha lição começa à entrada e passa por lembrar-me que o instinto de sobrevivência humano é sempre imensurável.

Era o meu primeiro dia ao serviço da Hope Foundation for Women and Children of Bangladesh e todos sabemos que o primeiro dia num local de trabalho novo é desconfortável, é intimidante. Normalmente, esse sentimento não dura muito e costumo adaptar-me relativamente rápido. Excepto desta vez.

Aqui, assistem-se mulheres e crianças residentes no maior campo de refugiados do mundo, densamente populado, onde vive quase um milhão de pessoas da minoria étnica rohingya, vítimas do que muitos já apelidaram de genocídio e limpeza étnica.

Apresentações feitas, fui levada numa visita por todas as áreas e serviços do hospital e, finalmente, à clínica e sala de enfermagem onde seria o meu posto de trabalho.

Era meio da manhã, chovia torrencialmente há já umas horas, havia uma fila de mulheres e crianças sentadas nos bancos de espera, elas que vêem nestes hospitais e clínicas presentes no campo a única opção de acesso a cuidados de saúde.

Não há pessoas com os olhos no telemóvel, no livro ou jornal que trouxeram, ou mesmo a “trincar qualquer coisa” enquanto esperam. Não é sequer uma zona de espera com burburinho, com pessoas a conversar ou crianças inquietas a mexer em tudo e mães preocupadas atrás delas. Não há, na verdade, grande contacto de nenhuma espécie, sem ser o inevitável com o médico ou enfermeiro, quando estes os chamam quase a gritar para se fazerem ouvir sob o barulho da chuva impiedosa a bater com força nos cobertos de plástico duro.

Foi impossível não reparar na ausência de sorrisos e expressões nestas mães. Há olhares tristes, distantes, vazios, que evitam o menor contacto com quem quer que seja, excepto com a criança que têm no colo e que agarram e beijam quando chora. Um ímpeto e comportamento tão protector que as leva a puxar a criança para si quando alguém que não elas tenta algum tipo de proximidade. Um ar tão assustado que não permite que, em momento algum, tirem os olhos arregalados do seu rebento e do profissional de saúde no momento da consulta, ao mesmo tempo que lhe limpam as lágrimas com o lenço sujo de lama ou molhado da chuva que lhes cobre o cabelo e lhes cai sobre os ombros. Como se ali, naquele casulo maternal, estivesse o único que lhes resta. E por vezes está, dizem-me colegas que trabalham aqui há mais tempo.

Achei, inocentemente, que missões anteriores na Serra Leoa, há um ano, e no Senegal, há três, me tinham preparado o suficiente para esta. Enganei-me. Apressei-me nas pré-concepções — erro meu, de principiante, eu sei. Percebi em conversas tímidas, curtas, a medo, que o trauma que os pôs nesta situação é ainda muito recente para ser considerado memória. Assim, nestes dias, e ao contrário do que senti antes no Oeste africano, consigo adivinhar que o balanço entre a alegria e a tristeza, a canção e o silêncio, o sorriso e as lágrimas, o trauma do passado e a esperança no futuro não é horizonte ainda. Não há balanço. Ainda foi ontem.

Não entendi bem quando uma voluntária anterior deste hospital não se alargou muito na mensagem que me enviou quando pedi conselhos antes da minha vinda. Disse-me: “Toma conta do teu coração”. Hoje, em Cox's Bazar, deito-me todos os dias a tentar fazê-lo.

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