Podem pensar nela de manhã à noite, mas a diabetes não os pára

Acordar, picar, pesar, administrar, comer. Esta é a rotina de quase um milhão de portugueses que vivem com diabetes. É o caso de Duarte Cerdeira, João Luís Ribeiro, Duarte Augusto e Cristina Mota. Ultrapassado o “choque” do diagnóstico, garantem que a doença nunca os “proibiu de fazer nada”. E não os pára.

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Filipa Novais e Maria Cunha

Duarte Cerdeira chega sorridente, de mochila, e prepara-se para mais uma jornada de trabalho. Todos os dias começam aqui, no ginásio Liberty Fitness Center, no centro da cidade de Braga, onde é instrutor de fitness. "'Bora lá, maltinha”, diz, enquanto abre a porta do estúdio e recebe os alunos com um sorriso. A aula está prestes a começar. 

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Foi há cerca de três anos que o jovem, então com 27 anos, descobriu que tinha diabetes tipo 1. Apesar da presença de vários sintomas, receava fazer o teste que viria a mudar a sua vida. “A diabetes dá uma sede tremenda, eu bebia de cinco a seis litros de água por dia, já não conseguia dar as aulas como antes”, conta.

A diabetes mellitus tipo 1 é uma doença auto-imune em que o próprio corpo ataca certas células do pâncreas responsáveis pela produção de insulina. Pode manifestar-se em pessoas de qualquer idade, contudo é nas crianças e jovens que o desenvolvimento da doença é mais frequente. Os sintomas são também conhecidos por 4Ps: polidipsia, aumento da sede; poliúria, aumento da vontade de urinar; polifagia, maior apetite; e, por último, perda de peso. Após a perda de seis quilogramas, era evidente para Duarte que algo estava errado: “Eu tenho sintomas de diabetes. Não quero ter, mas vou ter de fazer isto.” Mais tarde, o teste de glicemia veio a confirmar as suas suspeitas. “A minha reacção foi de choque”, recorda.

Duarte é instrutor de fitness em Braga Filipa Novais e Maria Cunha
Foi diagnosticado aos 27 anos Filipa Novais e Maria Cunha
“A minha reacção foi de choque”, recorda Filipa Novais e Maria Cunha
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Duarte é instrutor de fitness em Braga Filipa Novais e Maria Cunha

Os trampolins espalham-se pela sala e começam a ser ocupados pelos amantes de power jump. Em breve todos estão aos pulos. A música aumenta de ritmo e as primeiras gotas de suor já são visíveis. Duarte vai motivando a turma, incentivando todos a darem o seu melhor e a chegarem ao fim da aula. Mas não foi fácil chegar aqui, conciliar a gestão da doença com o trabalho. “Apesar de conseguir ter os níveis de açúcar mais controlados, no início tive de ter cuidado porque podia causar uma hipoglicemia”, confessa. Tanto as baixas de açúcar, hipoglicemias, como o aumento dos níveis de açúcar no sangue, as hiperglicemias, podem levar ao coma diabético. A hipoglicemia pode ser tratada com a ingestão de açúcar, já a hiperglicemia pode implicar uma ida ao hospital.

A administração de insulina em público ainda não é algo natural aos olhos de muita gente. “Porque estás a fazer isso aqui? Que impressão” são alguns dos comentários com que Duarte já teve de lidar. O jovem afirma que o acto de administrar insulina em público não devia ser um problema: “É como um hipertenso tomar um comprimido para baixar a tensão, nós temos de tomar insulina para poder viver.” Olhando para trás, diz ter saudades dos tempos em que podia agir “sem pensar e sem preocupações”. “Tive de abdicar da irresponsabilidade saudável”, diz. 

Acordar, picar, pesar, administrar, comer. Esta é a rotina de quase um milhão de portugueses que vivem com a doença. Para além do tipo 1, existe também o tipo 2, associado a maus hábitos alimentares. Por cá, o número de casos diagnosticados é cada vez maior — Portugal é mesmo um dos países com maior taxa de população diabética da Europa. Ainda assim, de acordo com o Programa Nacional para a Diabetes de 2017, cerca de 44% dos casos continuam por identificar. A doença não tem tendência a desaparecer, mas um diagnóstico precoce previne os piores cenários.

João Luís Ribeiro, de 29 anos, é médico no Centro de Saúde de Cabeceiras de Basto. Por ele passam, todos os dias, novos casos — como ele já foi. “Cada vez surgem mais casos porque se diagnostica mais”, explica o médico. Este número crescente deve-se a uma maior sensibilização da população e ao facto de a diabetes já não ser fatal. “Antigamente, a diabetes era uma sentença de morte. A partir do momento em que era diagnosticada a pessoa sabia que tinha um tempo limite de vida não muito longo”, refere, a partir do consultório que ocupa ao fundo de um corredor cheio de pequenas salas no serviço de urgências da unidade de saúde.

Na secretária, e já com a bata vestida, João Luís vê no computador as consultas do dia. Este centro de saúde é como uma porta para uma vida mais saudável num meio rural. Um elemento chave no controlo dos níveis de glicemia dos diabéticos, passa, maioritariamente, pela picada do dedo. João defende a comparticipação sem limitações das tiras para medir as glicemias. “Como estamos num meio mais rural, chegamos a ter casos de doentes que só picam uma vez por semana, o que é muito insuficiente”, aponta.

Enquanto hoje veste a bata branca, amanhã será outro médico a vesti-la. João tinha apenas 16 anos quando foi diagnosticado com diabetes tipo 1 e sente que ser médico e paciente ao mesmo tempo o ajuda a saber como melhor lidar com a doença. Sente-se sortudo por poder ter a perspectiva de quem está tanto atrás como à frente da secretária do consultório.

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Duarte Augusto foi diagnosticado aos 19 anos Filipa Novais e Maria Cunha

A diabetes surge como resultado da produção insuficiente de insulina. Esta hormona é responsável, entre outras coisas, por regular a glicemia, ou seja, os níveis de açúcar no sangue. Quando insuficiente pode levar à desregulação destes valores. Numa das salas do edifício de Medicina da Universidade do Minho, Duarte Augusto prepara o seu estudo. A mochila vem carregada não só de livros, mas também de todos os equipamentos que passaram a fazer parte da vida deste jovem. Pega no estojo e prepara-se para picar o dedo.

“Tinha uma glicemia de 535, o normal é ter 126, foi assim que a minha jornada começou”, conta o jovem de 21 anos, diagnosticado com diabetes tipo 1 há dois anos. O estudante de Medicina afirma que a rotina não é limitada pela doença. “Eu faço exercício físico e saio à noite. A única coisa que a diabetes me trouxe foi a necessidade de ter cuidado antes e depois, mas nunca me proibiu de fazer nada”, esclarece.

Apesar de toda a informação disponível, esta doença ainda é alvo de alguns estereótipos, sendo o mais comum a ligação ao consumo excessivo de doces. Mas, na verdade, a diabetes tipo 2 — apesar de estar ligada a maus hábitos alimentares — não tem uma relação directa com o consumo de açúcar. Duarte ressalva que os diabéticos, ao contrário do que se pensa, podem comer doces: “Eu posso comer um bolo de chocolate. Não posso é comer cinco bolos de chocolate, mas as pessoas que não têm diabetes também não, faz mal a toda a gente”, diz, enquanto guarda o medidor para iniciar o estudo. Os valores estão normais.

A doença alterou-lhe por completo o dia-a-dia. “Eu acordo e a primeira coisa que faço é gerir a diabetes, vou-me deitar e a última coisa que faço é gerir a diabetes”, revela. Na pausa para o lanche, um iogurte líquido e bolachas Maria são uma escolha segura. De forma a manter os valores, cada refeição significa uma nova dose de insulina.

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O predomínio da diabetes tem vindo a aumentar, sendo considerada uma das principais doenças do século XXI. Nos próximos 20 anos, prevê-se que atinja mais de 20% da população mundial. Mas embora seja conhecida, não está livre de preconceitos. Com 36 anos, Cristina Mota vive em Braga e é mãe de dois filhos. Talvez por isso defenda que a inclusão dos diabéticos deve começar desde cedo, como forma de combater o preconceito.

Sentada na sala de casa, rodeada de papéis, Cristina conta que foi diagnosticada com diabetes tipo 1 aos 11 anos. “Na altura, a diabetes era uma doença de velhinhos”, lembra. Da janela já se vê o pôr do Sol. As cores quentes espalham-se pela sala enquanto escreve mais um texto para partilhar na página no Facebook que criou: Eu tenho diabetes T1.

Enquanto os filhos brincam no quarto, a mãe recorda os tempos de gravidez e o quanto teve de lutar para torná-la realidade. A diabetes pode implicar riscos tanto para a grávida como para o feto. A vigilância adequada e um rigoroso controlo dos níveis de glicemia são determinantes no sucesso da gravidez. No caso dela, teve de ir a consultas semanalmente e fazer um controlo ainda mais apertado: “É quase preciso uma autorização para engravidar.” A filha mais nova passa com um olhar maroto, pronta para fazer alguma brincadeira enquanto a mãe trabalha. Cristina responde com um olhar carinhoso e uma gargalhada cúmplice.

Apesar de a diabetes tornar a gravidez de alto risco, não é pelo facto de a mãe ser diabética que os filhos também o serão. Segundo dados de 2015 provenientes do relatório Diabetes: Factos e Números do Observatório Nacional da Diabetes, a diabetes tipo 1 afectava 3327 crianças e jovens entre os 0 e os 19 anos, representando 0,16% da população. No mesmo ano, foram diagnosticados cerca de 13 novos casos de diabetes tipo 1 por cada 100 mil jovens entre os 0 e os 14 anos. Estes valores são, porém, inferiores aos registados nos anos anteriores. 

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Cristina Mota tem 36 anos e vive em Braga Filipa Novais e Maria Cunha

O aparecimento desta doença contribui para melhorar os hábitos de vida, mas também para um desgaste. O facto de não haver uma fórmula matemática para a diabetes faz com que cada dia seja diferente do anterior. “A diabetes, muitas vezes, tem vontade própria, é uma doença extremamente emotiva”, admite Cristina. Ao lado do computador está o telemóvel e a bomba de insulina, um aparelho que passou a fazer parte da sua vida.

O tratamento através das bombas de insulina veio melhorar a qualidade de vida das pessoas com diabetes, facilitando a administração da hormona. Uma necessidade na rotina dos diabéticos é a conversão dos alimentos em hidratos de carbono e a sua posterior conversão para a quantidade de insulina a ser administrada. As novas tecnologias vieram facilitar esta tarefa, com apps que fazem o cálculo automaticamente, como a Diabetes:M. “A aplicação, consoante a altura do dia e aquilo que como, diz-me a quantidade de insulina necessária. Pego na bomba, coloco os valores e está feito”, explica Cristina. No âmbito do programa nacional para a diabetes, o Ministério da Saúde pretende que, até ao final de 2019, todos os menores com diabetes tipo 1 tenham acesso a este aparelho

Cristina tem uma página de Facebook sobre a doença Filipa Novais e Maria Cunha
Pesa todos os alimentos que consome Filipa Novais e Maria Cunha
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Cristina tem uma página de Facebook sobre a doença Filipa Novais e Maria Cunha

Chega a hora do lanche. Cristina prepara a balança na qual vai pesar os seus alimentos. Este é um gesto que já faz parte do seu dia-a-dia: pesa tudo o que come para melhor controlar a doença. Por fim, pega no copo de iogurte já pesado e senta-se à mesa para continuar a conversa. E apresenta a quem a escuta o FreeStyle Libre, um aparelho para controlo glicémico que para já é apenas comparticipado para os diabéticos tipo 1. “O FreeStyle permite a medição dos níveis de glicemia sem ser através da picada do dedo”, explica, enquanto levanta o braço apontando para o local onde o equipamento está colocado. Hoje em dia, o avanço das novas tecnologias permite um controlo e uma resposta mais eficaz à doença, dando uma melhor qualidade de vida dos diabéticos. Esta é uma doença que afecta cerca de 425 milhões de pessoas em todo o mundo, sendo a China e a Índia os países com maior incidência.

É altura de voltar ao trabalho. Cristina regressa à sala onde o computador a espera. Entre livros e mensagens, escreve as últimas linhas do próximo artigo. No título, resume em cinco palavras a vida de quem, de repente, teve de começar a conviver com a doença: “A diabetes não nos pára.”

Estudantes de Jornalismo na Universidade do Minho

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