O atribulado pergaminho que esteve à venda no OLX já é da Torre do Tombo

O documento com a escritura da entrega do Castelo de Lisboa ao Conde de Barcelos tinha sido apreendido pela Polícia Judiciária. Custou ao Estado os mesmos 750 euros por que tinha sido colocado à venda naquele portal.

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O pergaminho deve chegar à Torre do Tombo na próxima semana DR

O pergaminho do século XIV que foi apreendido no Porto pela Polícia Judiciária (PJ) depois de ter estado à venda no site de classificados OLX já pertence ao Estado e deve chegar ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), em Lisboa, na próxima semana. “A aquisição já está concretizada”, revelou ao PÚBLICO o director do ANTT, Silvestre Lacerda. Finalmente, após algumas atribulações, o documento com a escritura da entrega do Castelo de Lisboa ao Conde de Barcelos vai poder "enriquecer o património arquivístico nacional”.

O pergaminho datado de 1383 foi formalmente adquirido pelo ANTT no último dia do ano. “Fizemos o pagamento de acordo com o valor que estava indicado quando foi colocado à venda no OLX, os 750 euros”, precisa Silvestre Lacerda, explicando que o documento foi "objecto de análise no laboratório da PJ”, após a sua apreensão em Novembro do ano passado. Ultrapassada a “tramitação burocrática” necessária, o pergaminho trecentista chegará à sua morada final.

Aí, depois de alguns procedimentos técnicos, passará a estar ao dispor de todos os investigadores e cidadãos que solicitem a sua consulta. Manter este documento histórico no domínio público permitirá aprofundar e afinar o conhecimento acerca "desta época conturbada do nosso país, e dos seus intervenientes”, explica o historiador e antigo director-geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas. “É mais um documento de uma época de transformação em Portugal, associada à Revolução de 1383-85”, contextualiza.

Deste pergaminho agora formalmente adquirido pelo Estado consta a ordem do Rei D. Fernando ao Alcaide do Castelo de Lisboa, Martim Afonso Valente, para que a fortificação fosse entregue ao Conde de Barcelos, Dom João Afonso Telo. Será um de três exemplares existentes do documento e data de 1383. “Escritura de entrega do Castelo de Lisboa que fez o Alcaide do mesmo, Martim Afonso Valente, ao Conde de Barcelos, Dom João Afonso Telo, o qual prestou ‘preito e menagem’ ao primeiro, de acordo com o determinado pelo rei Dom Fernando, pela carta de 16 de Janeiro de 1383, tresladada nesta escritura. Entre as testemunhas do acto esteve presente o Alcaide do Castelo de Faria, Diogo Gonçalves. Tabelião: Peres Esteves. 1383, Janeiro 26, Castelo de Lisboa”, lia-se na descrição no OLX. 

O facto de ter surgido à venda num site onde se transacciona todo o tipo de bens corriqueiros foi um dado insólito na história deste pergaminho. Muitas vezes, diz Silvestre Lacerda, "estes documentos estão em mãos de particulares” e são passados de geração em geração dentro de uma família, ficando privados da prerrogativa de "acesso público” que o depósito na Torre do Tombo assegura: “Os arquivos nacionais têm esta dimensão de possibilitar o acesso generalizado dos cidadãos àquilo que é parte integrante do nosso património.”

Um valor inestimável

No final de Outubro, o pergaminho do século XIV com a escritura da entrega do Castelo de Lisboa ao Conde de Barcelos estava à venda no site de classificados OLX. Detalhando as suas características e o seu relevo histórico, o vendedor identificado como Luís Sampaio pedia por ele 750 euros. O tema chega à imprensa através do PÚBLICO, a 2 de Novembro, mas já antes a Torre do Tombo tinha sinalizado o seu interesse e manifestado ao proprietário a intenção de exercer o direito de opção na sua compra.

Esse direito do Estado está previsto no Decreto-Lei n.º 16/93 quando esteja em causa a “venda de um bem arquivístico classificado ou em vias de classificação”. Mas mesmo não cumprindo o pergaminho em causa esse requisito, a Lei 107/2001 indica que essa salvaguarda abrange todos os documentos com mais de 100 anos considerados relevantes.

Luís Sampaio demorou dez dias a dar resposta ao primeiro email da Torre do Tombo, datado de 20 de Outubro. Quando finalmente o fez, foi para responder, laconicamente, que o documento já tinha sido vendido, sem mais acrescentar. Os responsáveis do ANTT alertaram então a PJ, que anunciou no dia 20 de Novembro ter apreendido o pergaminho – indicando que o vendedor, identificado apenas como “um coleccionador de Gaia”, e que seria também o proprietário do bem, o entregou “voluntariamente”.

A PJ explicou então, em comunicado, que iria proceder a uma peritagem técnica, “dada a importância e o valor inestimável do documento”. Silvestre Lacerda explica agora que os especialistas da Torre do Tombo se disponibilizaram para fazer essa “análise diplomática” do pergaminho (no âmbito da disciplina com o mesmo nome dedicada à análise documental) e que só falta agora “fazer a respectiva descrição técnica para poder digitalizá-lo e integrá-lo na base de dados [do ANTT]." Cumprido esse último procedimento, ficará "à disposição do público e dos investigadores”.

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Castelo de São Jorge, Lisboa Nuno Ferreira Santos

A autenticidade do documento nunca chegou a levantar dúvidas substanciais, na verdade, dada a existência de um registo na chancelaria de Dom Fernando.

A investigação aberta pela PJ tinha ainda como objectivo, como disse então ao PÚBLICO o coordenador de investigação criminal Pedro Silva, investigar os contornos do negócio e a sua licitude, nomeadamente a eventual existência de algum crime de receptação ou furto em volta do pergaminho. Questionado sobre se o inquérito já terminou, o director do ANTT disse que “a proposta será de arquivar o processo” na sequência dos últimos desenvolvimentos.

O futuro da escritura de entrega do Castelo de Lisboa pode passar por uma exposição ao público já no próximo mês. Silvestre Lacerda indicou ao PÚBLICO haver a intenção, que terá ainda de ser apresentada às outras entidades responsáveis, de o integrar numa exposição dedicada à Lisboa medieval a inaugurar em Fevereiro. A iniciativa conjunta do Instituto de Estudos Medievais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, do Arquivo da Câmara Municipal de Lisboa e do ANTT, coordenada pela professora e medievalista Amélia Andrade, poderá ser o primeiro momento de exposição pública deste atribulado documento original após a saga que foi a sua aquisição.

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