O “poliamoroso” e os beijinhos na avó

Uns precisavam de beijar mais vezes os avós, os outros precisavam de beijar mais vezes Daniel Cardoso – assim se evitariam em simultâneo as micromariquices e as macrogrunhices.

O caso da semana não foi o orçamento, as suspeitas de Carlos Alexandre, o Brasil de Bolsonaro ou a Operação Éter – foi um jovem de cabelos compridos que se levantou no Prós e Contras para emitir uma opinião bizarra sobre os beijinhos nas avós. Nada contra. É bom que continuemos a ter alguma coisa para discutir socialmente, agora que o campeonato de futebol está parado e já ninguém vê a mesma telenovela. Convém apenas que respeitemos aquilo que são regras de uma boa argumentação, e, neste caso, tanto um lado como o outro estraçalharam-nas estrondosamente ao longo da semana.

Comecemos por aqueles que acham que obrigar crianças a beijar os avós está mesmo muito errado e que apareceram munidos de estudos e de citações do pediatra Mário Cordeiro. Estes supostos defensores de Daniel Cardoso levam um chumbo em honestidade intelectual. O problema das declarações no Prós e Contras não está em defender que uma criança não deve ser forçada a beijar quem não lhe apetece, mas na relação de causalidade que ele estabelece entre esse gesto e a aceitação de abusos sobre a sua intimidade quando chega à adolescência. Daí a sua referência a Michel Foucault e às microfísicas do poder. Aquilo que Daniel Cardoso fez não foi propagandear a parentalidade positiva. Foi estabelecer uma correlação entre a obrigação do beijo no presente e a tolerância ao abuso sexual no futuro, e é essa correlação que me parece escandalosamente abusiva.

O Diário de Notícias, sempre na linha da frente na defesa dos cavaleiros das causas fracturantes, fez uma boa entrevista a Daniel Cardoso. Só que introduzia o tema desta forma: “A frase em questão, na discussão sobre o consentimento sexual, foi esta: ‘É preciso falar de educação de forma concreta. A educação é quando a avozinha ou o avozinho vai lá a casa e a criança é obrigada a dar o beijinho à avozinha ou ao avozinho. Isto é educação, estamos a educar para a violência sobre o corpo do outro e da outra desde crianças. Obrigar alguém a ter um gesto físico de intimidade com outra pessoa como obrigação coerciva é uma pequena pedagogia que depois cresce.’” Qual é o problema desta citação? O problema é que retira estrategicamente estas palavras finais de Daniel Cardoso no programa: “E o que é que acontece? Depois vemos os estudos com jovens adolescentes e quarenta e tal por cento deles e delas acham natural que o namorado lhes controle o telemóvel.” O Diário de Notícias manteve o argumento aceitável e apagou o nexo de causalidade insustentável. Assim é fácil.

Mas isto não foi o mais grave que aconteceu após as declarações de Daniel Cardoso. O mais grave foi terem-se aberto as comportas da selvajaria homofóbica e preconceituosa, espalhando-se pelas redes sociais uma longa galeria de fotos de Daniel Cardoso, uma das quais até foi parar à primeira página do Correio da Manhã. De repente, ele deixou de ter nome e passou a ser o “poliamoroso”, e a sua opinião foi imediatamente desvalorizada não por ser parva ou por estar mal sustentada, mas por ter vindo de um homem que tem quatro namoradas, um cabelo esquisito e gosta de bondage. Eis mais uma correlação sem pés nem cabeça. Por mais estranhos que sejam os seus gostos e originais as suas práticas sexuais, elas importam zero para a análise dos seus argumentos. Uns precisavam de beijar mais vezes os avós, os outros precisavam de beijar mais vezes Daniel Cardoso – assim se evitariam em simultâneo as micromariquices e as macrogrunhices.

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