“Só 3%, 4% das situações denunciadas são simulações”

Números são claros: falsas acusações em casos de violação são residuais. Prova difícil e medo do desfecho atrasam decisão de denunciar.

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É uma das “ideias flutuantes” que Isabel Ventura encontrou na sua longa investigação às decisões judiciais sobre crimes de violação: o preconceito de que “as mulheres mentem”. Há uma desconfiança histórica sobre as vítimas de violação, na sua esmagadora maioria mulheres, ouvidas com cautela, consideradas ardilosas. Um conceito que desapareceu das interpretações legais, mas que permanece “a flutuar” no senso comum.

Com a atenção que tem vindo a ser dada a situações de violência sexual alegadamente ocorridas há vários anos, o fantasma das “falsas denúncias” voltou a pairar. Mas os dados recolhidos com rigor científico mostram que a prevalência é muito baixa. “Há uma percentagem relativamente mínima — talvez 3%, 4%, varia um pouco — de situações que são denunciadas e que são simulações”, reage o director nacional adjunto da Polícia Judiciária, Carlos Farinha, remetendo à sua experiência profissional e também enquanto formador nas áreas de investigação criminal, incluindo de crimes sexuais.

Os dados surgem em diversos estudos internacionais sobre o crime de violação, mas é de um estudo conduzido em 2008 por uma equipa do Instituto Nacional de Medicina Legal (INML), no âmbito de um projecto europeu sobre o percurso das denúncias de violação até às (poucas) condenações, que se conhece a estatística portuguesa de referência para as chamadas “acusações falsas” – apenas 5%.

Isabel Ventura chama a atenção para o facto de ser preciso alguma cautela ao definir o que conta como “falsa denúncia”. No estudo europeu coordenado pela britânica Liz Kelly em que Portugal participou, a proporção de falsas acusações nos nove países analisados variou entre 1% e 9%, em linha com outros tipos de crime. Mas nos países em que as simulações de crime são separadas dos casos de ausência de provas, as percentagens situavam-se abaixo dos 5%.

Atrito

“Elas também inventam muito” é uma afirmação de senso comum, que também se ouve entre profissionais da Administração Interna e da área judicial, conta Dália Costa, docente do ISCSP. A investigadora do CIEG – Centro Interdisciplinar de Estudos de Género, que fez parte de um estudo coordenado por Sofia Neves sobre as percepções dos profissionais da Administração Pública sobre violência sexual nas relações de intimidade, conta que nas entrevistas de grupo, ao aprofundar as características das situações inicialmente relatadas como “inventadas” ou “exageradas”, os próprios profissionais vão desafiando os estereótipos e descortinando as pressões sofridas pelas vítimas que motivam a retirada de queixa ou o seu comportamento ao longo do processo.

Carlos Farinha sublinha ainda a preparação dos investigadores da Polícia Judiciária (órgão de polícia com competência de investigação nesta área), recordando o apuramento dos métodos de interrogatório e a crescente especialização e formação dos profissionais. Reconhece que ainda há melhorias a colmatar, mas que “todas as polícias fizeram o seu percurso”.

Para Celina Manita, investigadora da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto que trabalha com vítimas e com agressores, a percepção é que um dos dissuasores da denúncia de uma agressão é, mais frequentemente, a ideia de que o resultado final não será favorável. “É mais a ideia de que posso passar por uma situação que me vai expor, que me vai provocar sofrimento, e no fim talvez não aconteça nada, mesmo que seja provada.”

Regresse-se então às taxas de atrito, o processo pelo qual os casos de violação saem do sistema judicial antes de chegar a julgamento. No estudo do INML, 39% das vítimas desistiram ao longo do processo e 32% dos casos foram arquivados pelo Ministério Público por não conseguir recolher indícios suficientes para levar a julgamento. Trata-se, afinal, de um crime em que existe alguma dificuldade na produção da prova, em particular quando falha a perícia médico-legal, sublinha Marlene Rodrigues, co-autora do estudo.

No final das contas, dos 100 casos analisados, apenas 11 tinham sido julgados na altura do estudo, com três absolvidos e oito condenações. O perfil do agressor acaba por ser determinante, por exemplo, para a aplicação da pena: solteiros, desempregados, com antecedentes criminais, características que correspondem ao estereótipo de um agressor. “As vítimas são sempre avaliadas em articulação com quem estão a acusar”, nota Isabel Ventura, regressando à ideia de que as vozes das mulheres são desvalorizadas, em particular face a homens respeitáveis, que não correspondem ao perfil de senso comum de um agressor.

Relações de intimidade

No estudo do INML, ao descrever o universo de queixas apresentadas, lê-se que “estes dados sugerem que, em Portugal, as mulheres ainda têm dificuldade em queixar-se de violação num contexto relacional e que muitos dos casos registados correspondem ao estereótipo do ‘real rape’”, uma “violação a sério” - num local público, por um homem desconhecido que usa de violência, em que a vítima resiste e fica com marcas físicas. Mas o que as estatísticas apontam é que mais de metade dos casos de violação são perpretados por conhecidos, muitas vezes em contexto de relações de intimidade. E estes contextos são também aqueles em que as vítimas mais demoram a denunciar, o que leva a maiores dificuldades na obtenção de provas.

E há ainda vários obstáculos ao reconhecimento deste tipo de violência. Isabel Ventura, que conversou com vários magistrados no seu estudo, diz que para alguns ainda há “dificuldade em percepcionar processos de violência que não sejam considerados convencionais.”

Dália Costa, especialista na área da violência doméstica e dos estudos de género, recorda que “para se reconhecer, enquanto sociedade, a existência da violência doméstica, demorámos 20 anos”. “Isto é preocupante,” alerta, “porque estamos muito atrasados no reconhecimento das várias manifestações da violência, como a violência sexual”. Para a investigadora, “a sociedade não está preparada para discutir estas questões e para lhe dar tanta importância quanto já dá à violência doméstica.”

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