“Quando a juventude se põe em marcha não há recuo. O debate sobre o aborto veio para ficar” na Argentina

A discussão em que poucos acreditavam aconteceu mesmo. Os argentinos passaram os últimos meses a falar na descriminalização do aborto. Mas os dados diziam que não será para já.

Domingo, marcharam em frente do Congresso vestidas como as personagens do livro e série televisiva The Handmaid’s Tale
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Domingo, marcharam em frente do Congresso vestidas como as personagens do livro e série televisiva The Handmaid’s Tale Marcos Brindicci/Reuters
Uma senadora com o lenço verde do movimento atado ao pulso
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Uma senadora com o lenço verde do movimento atado ao pulso David Fernandez/EPA
A concentração, junto ao Senado, em Buenos Aires
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A concentração, junto ao Senado, em Buenos Aires David Fernandez/EPA
O movimento "celeste", anti-descriminalização, juntou-se numa missa durante a votação
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O movimento "celeste", anti-descriminalização, juntou-se numa missa durante a votação David Fernandez/EPA

Independentemente do resultado da votação prevista para a madrugada desta quinta-feira no Senado da Argentina, a lei que descriminaliza o aborto no país até às 14 semanas “é de cada uma das argentinas que foi à escola com um lenço verde” e “o debate aberto por todas elas já não se pode fechar”.

A convicção é da senadora Ana Claudia Almirón, da província de Corrientes, uma das primeiras a discursar no Senado, referindo-se ao impressionante movimento que provocou uma discussão que muitos considerariam impensável no país que tem o catolicismo como religião oficial e onde o Papa Francisco nasceu.

Enquanto os senadores expunham as suas posições sobre a lei aprovada por escassa margem em Junho na Câmara dos Deputados (129 contra 125 votos), e que antes do início do debate contava com 38 votos contra anunciados (a maioria num Senado com 72 membros), cá fora, mulheres e raparigas do chamado “movimento verde” concentravam-se às centenas de milhares (queriam chegar ao milhão). No sábado, tinham sido quase meio milhão as activistas mobilizadas para defender a posição contrária, com os seus lenços azul celeste, a cor da bandeira e da religião, e o slogan “salvemos as duas vidas”.

Os trabalhos no Senado começaram pelas 10h (14h em Portugal continental) e não se esperava que acabasse antes das 24h (4h00) – seria “uma maratona”, antecipara o diário Clarín, que, como todos os jornais, transmitiu o debate em directo no seu site. “Com 61 oradores inscritos, deve votar-se cerca da meia-noite”, estimava-se.

“Aborto legal para não morrer”, é uma das frases dos lenços verdes usados nos últimos meses por raparigas dos 13 aos 18 anos (algumas discursaram na Câmara dos Deputados e contaram ter sido expulsas do liceu por expressarem a sua posição) e mulheres de todas as idades. “Aborto legal, seguro e gratuito, já”, é outra das frases. Entre as activistas mais conhecidas também há gente mais velha, como Norma Cuevas, que perdeu a filha em 2007 e participou nas audiências no Parlamento.

Ana María Acevedo tinha 19 anos e três filhos quando foi diagnosticada com cancro oral. Logo a seguir, os médicos descobriram que estava grávida de duas semanas e cancelaram as sessões de quimioterapia, recusando tratar a jovem por causa da gravidez sem nunca considerarem pôr-lhe termo – apesar de a lei permitir o aborto em caso de violação ou risco de vida para a mãe.

A bebé nasceu por cesariana aos seis meses de gravidez e morreu passado 24 horas; Ana María Acevedo morreu duas semanas mais tarde. Norma Cuevas passou quarta-feira na concentração junto ao Congresso, entre jovens, meninas e mães.

A última morte conhecida por complicações na sequência de um aborto clandestino aconteceu sábado: Liliana Herrera, com 22 anos e dois filhos, morreu no hospital em Santigo del Estero (província do Norte que é a mais pobre do país). Segundo a Amnistia Internacional, mais de 3000 mulheres morreram como resultado de abortos inseguros nos últimos 25 anos.

Revolução das raparigas

“As raparigas já decidiram, aborto legal agora” são alguns dos slogans de um movimento que evoluiu do combate contra a violência doméstica, em 2015, para a exigência da descriminalização da interrupção da gravidez. As imagens são impressionantes pela juventude das activistas, muitas adolescentes, algumas com menos de 13 anos.

Uma jornalista do diário Página/12, Luciana Peker, fala numa “revolução das raparigas” e muitos senadores admitiram ter mudado de posição por causa das filhas – alguns mantiveram-se contra, mas garantem ter aprendido e ficado a entender melhor “o outro lado”.

Ofelia Fernández, um dos ídolos destas raparigas, não tem dúvidas: “A maioria dos nossos pais e avós aprendem connosco”. A 28 de Maio falou no Parlamento e as suas palavras, duras e seguras, ficaram na memória de quem a ouviu: “É preciso perceber que nós queremos outro género de vida. O aborto clandestino existe e mata, as mulheres pobres e os homens transexuais morrem”.

Fernández é o símbolo de uma nova geração de feministas, que cresceram nos anos de poder dos Kirchner (Nestor e Cristina, 2003-2015), anos de “efervescência social”, com líderes que “reivindicaram a luta das guerrilhas dos anos 1970, contribuindo para o renascimento da militância de uma parte da juventude, que se reclama de esquerda num momento em que os políticos tradicionais perderam credibilidade”, resume o jornal Le Monde.

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Antecipava-se "uma maratona" de mais de 12 horas no Senado David Fernandez/EPA

O corpo e a ditadura

Estas adolescentes acreditam nas palavras da senadora Ana Claudia Almirón. “Com esta lei vamos poder ser um pouco mais livres e iguais. Vamos poder decidir sobre o nosso corpo.” Na Argentina, mais do que noutros lugares, esta ideia toca fundo: muitas jovens mulheres são netas das Mães de Maio, filhas das mulheres sequestradas pela ditadura militar e obrigadas a ter filhos (que eram entregues a famílias de militares) antes de serem assassinadas.

Domingo, marcharam em frente do Congresso vestidas como as personagens do livro e série televisiva The Handmaid’s Tale, uma distopia sobre a opressão das mulheres (capas vermelhas, touca branca) – a autora, Margaret Atwood, de 79 anos, afirmou que os crimes cometidos durante a última ditadura argentina (1976-1983) foram uma das fontes para o livro, de 1985.

Se é quase uma certeza que este debate “já não se pode fechar” também era mais do que provável que a lei fosse chumbada no Senado. Uma lei a que a Igreja Católica se opôs com veemência: segundo o Clarín, o Papa pediu aos senadores antiaborto para pressionarem os seus colegas legisladores. Um pedido que pode ter dado resultado – o Senado estava quase partido ao meio até segunda-feira; desde então, vários senadores que não tinham dado conta da sua posição anunciaram que votariam contra o projecto.

As regras dizem que este ano não se poderá voltar a debater o tema se a lei for chumbada. Será uma questão de tempo, no maior dos países da América Latina (uma das regiões do mundo com leis mais restritivas) a tentar até agora descriminalizar o aborto? Se a pergunta for feita às activistas dos lenços verdes, todas dirão que “sim”. A senadora Almirón concorda: “Quando a juventude se põe em marcha não há recuo”.

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