Porquê agora? À segunda temporada, The Handmaid’s Tale continua urgente

A segunda temporada, de 13 episódios, estreia-se quinta-feira em Portugal (um dia depois de nos EUA) no Nos Play. Os seus temas eram de ontem, mantêm-se agora.

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Na nova temporada, os momentos de flashback para os tempos antes da implantação da República de Gilead são passados na nossa actualidade
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Há 30 anos que uma parte das entrevistas de Margaret Atwood é sempre dedicada ao tempo. A autora canadiana tanto rejeita declarações simplistas de feminismo quanto esclarece que vê a sua ficção científica como ficção especulativa, mas ocupa sobretudo esse seu tempo de antena a recusar poderes divinatórios. Não é uma profeta, repete, mesmo quando o seu trabalho de 1985 parece tão verosímil e iminente na sua presciência quanto a 2017/18. Este é o tempo de The Handmaid’s Tale, uma distopia escrita sobre o medo do presente dos anos 1980 e que graças a duas forças inexoráveis e interligadas conquistou 2017 - e se prepara para tomar de assalto 2018. Essas duas forças são a televisão e Donald Trump. A segunda temporada de The Handmaid’s Tale estreia-se esta quinta-feira em Portugal e continua urgente.

Margaret Atwood não se incomoda com esta nova moldura para a sua obra emblemática que agora é também televisão de prestígio. A prolífica autora de 79 anos, aliás, regojiza-se com o facto de The Handmaid’s Tale, a história que se tornou na primeira série de um serviço de streaming (o Hulu) a receber o mais importante Emmy, o de drama, em 2017, se ter tornado numa fonte simbólica de protesto. Uma história que era sobre outro agora, outro presente  - em que via os direitos básicos das mulheres em risco e ataques galopantes ao meio ambiente - tornou-se numa série do momento. 

O Netflix não a quis fazer, o filme de 1990, apesar da qualidade dos seus nomes (do argumento de Harold Pinter à realização de Volker Schlondorff, passando pela interpretação de Natasha Richardson), foi um flop em todos os aspectos. Mas a série que regressa ao serviço Nos Play (serviço de conteúdos por subscrição da Nos) esta quinta-feira com dois episódios da nova temporada, um dia depois dos EUA, encontrou uma casa e tornou-se um fenómeno. “É acidentalmente a história mais presciente na televisão”, dizia há um ano Elisabeth Moss, a protagonista Offred, uma serva reprodutiva de um casal rico e estéril na estratificadíssima e puritana sociedade totalitarista de A História de uma Serva (Ed. Bertrand, 2013). 

De repente, não estava só no streaming. O livro estava nos top de vendas, a sua iconografia nas ruas. Na Marcha das Mulheres após a eleição de Donald Trump (e este ano novamente), lia-se nos cartazes: “Tornem Margaret Atwood ficção outra vez”, num trocadilho com o lema da campanha de Trump “Make America Great Again”; “The Handmaid’s Tale é ficção distópica, não um manual de instruções”; “eu li os livros, não quero vivê-los”. 

No último ano, depois da eleição de Trump e da retórica de muitos dos seus correligionários - e antes do momento MeToo, mas também depois dele - sentiu-se nas ruas e na ficção o temor da quebra de valores, do recuo nos direitos civis, o ataque à liberdade de imprensa, pairava o espectro do totalitarismo. No New York Times, há um ano, Atwood punha o dedo no pulso da sociedade dos EUA, via “medos e ansiedades” a proliferar após as presidenciais. 

Atwood colecciona recortes de jornais da altura em que escreveu A História de uma Serva, e de agora. Tudo na sua obra tem por base casos reais, históricos, de servidão sexual, anulação económica das mulheres ou sistemas de delação como as da República de Gilead da obra. Folheia recortes actuais sobre Trump e suas nomeações para o governo. Na conversa com a revista New Yorker em 2017 em que os passa em revista, ecoam os gritos “lock her up” dos comícios contra Hillary Clinton, o ambiente de caça às bruxas com ares de Salem. “É o regresso do patriarcado.” 

Se Hillary Clinton tivesse vencido a eleição de Outubro de 2016, admitiu há dias no festival TimesTalks do New York Times, esta “seria uma série vista de outra forma”. Mas entre as filmagens de 2016 em que a equipa chefiada por Bruce Miller temia que a história não encontrasse adesão dos espectadores e a eleição, tudo mudou. “Nada mudou na série, mas o enquadramento mudou” depois da ascenção de Trump, figura forjada tanto no mundo empresarial quanto no televisivo, anfitrião abrasivo mas profissional do espaço mediático e, ainda há escassos anos, dos seus próprios concursos/reality shows. A sua retórica, os casos em torno da forma como encara as mulheres que vêm desde a campanha e as posições de membros da sua administração fazem com que parte da América tema que a sua política limite o acesso a cuidados de saúde - a comparticipação de contracepção, gravidez ou partos e limites à interrupção voluntária da gravidez. “Não encaro com leveza que um político diga que não pode haver uma gravidez como resultado de uma violação porque o corpo da mulher sabe-o e rejeita-o”, dizia Atwood à Time

Um conto de servidão e de asfixiante restrição, “A História de uma Serva é sempre relevante, mas de diferentes formas em diferentes contextos políticos”, disse à Time

Em 2017, encontrou o seu momento, as circunstâncias da sua reverberação. A série transbordou para as ruas. “Tornou-se um método de protesto”, disse Atwood há dias no almoço Power of Women da revista Variety. “As pessoas vestem-se de servas, e aparecem” nos lugares onde se fazem e decidem as leis, a nível local ou nacional. “São silenciosas e modestas, mas toda a gente olha para elas e sabe o que elas significam”, em todo o mundo. Em 2018, com 13 novos episódios que vão além do seu romance e cujos guiões só leu no seu papel de consultora executiva, “já não é uma história sobre algo que não podia acontecer. Tornou-se uma história em processo”.

Na nova temporada, os momentos de flashback para os tempos antes da implantação da República de Gilead são passados na nossa actualidade. Depois de ver o primeiro episódio, Margaret Atwood disse ao Guardian: “já não tenho unhas”. Offred, Offglen, as Tias e as Esposas vão a lugares a que A História de uma Serva e a sua literatura de testemunho, de diário de crise, só aludiram. Margaret Atwood defende que a ficção distópica sobre o futuro nos ajuda a preparar-nos. E na nossa realidade, postulou há dias em Nova Iorque, a poderosa “democracia americana nunca foi tão desafiada”.

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