Em nome do pai, dos filhos e do espírito da alegria musical

Caetano Veloso e os filhos mostraram em Portugal, primeiro no Porto e depois em Lisboa, os laços musicais que os unem para lá do sangue. No primeiro dia no Coliseu dos Recreios, o encontro, com serenidade de recital, terminou em efusiva festa.

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Caetano e os filhos no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, na noite de 1 de Agosto de 2018 MIGUEL MANSO
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Caetano Veloso MIGUEL MANSO
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Caetano e Zeca Veloso MIGUEL MANSO
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Moreno Veloso MIGUEL MANSO
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Tom Veloso MIGUEL MANSO

Este não é, como alguém notava no final do espectáculo, um concerto “como os outros”. Caetano Veloso, que desde os anos 1980 se apresenta no palco do Coliseu dos Recreios com as mais variadas propostas (desde a energética A Outra Banda da Terra até ao solo absoluto), trouxe desta vez um misto de recital e reunião de família, com fio condutor claro para os iniciados na sua história ou na da família Veloso (a Bahia e tudo o resto) mas de mais difícil apreensão pelos que disso pouco ou nada sabem a não ser os sucessos que dificilmente eram para aqui chamados. Com um Coliseu dos Recreios de lotação esgotada (o que levou a marcar nova apresentação para o dia seguinte) e um público antecipadamente receptivo ao que ali fosse apresentado, o espectáculo seguiu, na sua quase totalidade o roteiro registado no DVD Ofertório (o CD é bem mais comedido), com Caetano e os filhos Moreno, Zeca e Tom a revezarem-se nas vozes e instrumentos mas quase sempre com serenidade de recital, raramente interrompida por momentos de pulsação rítmica (o funk electrónico de Alexandrino ou os sambas de roda baianos).

O arranque fez-se com Alegria, alegria, voz libertária de um Caetano ainda jovem (a canção foi composta em 1967, tinha ele 25 anos), “caminhando contra o vento/ sem lenço, sem documento”, mal antevendo ainda o fulgor dos Doces Bárbaros, onde ele próprio, Maria Bethânia, Gal Costa e Gilberto Gil deram corpo a uma tempestade musical, em 1976. Dela, foi para aqui recuperada a doce calmaria de O seu amor, onde Gil quis fazer uma réplica irónica do slogan intimidatório da ditadura militar brasileira nos anos 70 (“Brasil, ame-o ou deixe-o”), proclamando: “O seu amor/ ame-o e deixe-o livre para amar.” Cantado por Caetano e filhos, num dos raros momentos em que foi aproveitada a harmonia vocal das quatro vozes, resultou num bálsamo regenerador.

Depois, viriam as referências familiares. Boas-vindas, escrita por Caetano quando Zeca nasceu (e onde a família dá as boas-vindas ao recém-nascido) abre caminho a uma canção original de Zeca, Todo homem, que ele canta em falsete, como o pai por várias vezes fez ao longo da sua carreira. Mas o falsete de Zeca, sobretudo ao repetir “todo homem precisa de uma mãe”, soa angelical e etéreo. Genipapo absoluto, evocando a doce memória de Santo Amaro da Purificação da Bahia, onde Caetano nasceu (“Cantar é mais do que lembrar (…)/ É ter o coração daquilo”), passou a “bandeira” aos outros filhos. Primeiro Moreno, com Um passo à frente, depois Tom com Clarão e De tentar voltar, esta composta de parceria com o pai; que retomou as rédeas vocais em A tua presença morena e Trem das cores, compostas, respectivamente nas décadas de 1970 e 1980, para estender depois a ribalta aos filhos, primeiro com Um só lugar (de Tom e Cezar Mendes), depois com a exaltação electrónica dançante e funk de Alexandrino.

O coração das raízes baianas voltou a pulsar em Oração ao tempo, Alguém cantando (quase a capella), Ofertório (“canto em homenagem à religiosidade dos meus filhos”) e o sempre emotivo Reconvexo, primeiro tema da noite a gerar uma “pateada positiva” a fazer estremecer a sala por breves instantes. A segunda viria com Leãozinho, cantada por Moreno e com Caetano a acompanhá-lo assobiando, já depois de Você me deu. Pretexto para Moreno cantar um tema seu, Ninguém viu, dedicando-o à memória de Hélio Eichbauer (1941-2018), conhecido cenógrafo brasileiro que assinou o cenário de Ofertório e que morreu recentemente, em 20 de Julho, aos 76 anos, vítima de enfarte. Hélio era, também, padrasto de Moreno, pois casara com Dedé Gadelha, sua mãe, após esta se separar de Caetano Veloso, e vivia com ela até agora. Mais outro laço familiar.

Na sequência dessa dedicatória, Caetano cantou duas canções escritas para as mulheres com quem casou e viveu, mães dos seus filhos: Ela e eu (para Dedé Gadelha, mãe de Moreno) e Não me arrependo (para Paula Lavigne, mãe de Zeca e Tom). Um canto de afoxé para o bloco do Ilê, primeira parceria de Caetano com o filho Moreno, tinha este apenas 9 anos, foi cantado no coliseu de forma singular: Moreno assumiu a voz que antes fora do pai, surgindo Tom a fazer a réplica que antes era a de Moreno, “Ilé ayê”. Força estranha, na sua estrutura de quase-hino, juntou as quatro vezes, em uníssono e à vez, fechando a noite com How beautiful could a being be, um samba de roda de letra simples e em inglês, que Moreno escreveu e o pai gravou com ele em Livro (1997).

Ainda haveria mais canções, depois dos fortes aplausos, sendo as primeiras escolhidas a pensar em Portugal. Moreno cantou a marcha lisboeta Noite de Santo António, que foi gravada por Amália, acompanhado ao violão por Caetano e Tom; e depois Caetano cantou, seguido pelos filhos, Amar pelos dois, de Luísa Sobral e Salvador Sobral. As referências portuguesas, muito aplaudidas, ficaram por aqui. Seguiram-se Deusa do Amor, de Moreno, Tá Escrito, de Zeca, e a evocativa Gente, onde Caetano cita vários nomes familiares para concluir numa singela frase: “Vida, doce mistério”. Teria ficado por aqui, mas faltava algo mais festivo na noite ainda morna. E foi assim que surgiu A luz de Tieta, a apelar ao canto colectivo e à dança, e entregue por fim ao público que a entoou até ao gesto final de adeus. Não sendo, como se disse de início, um concerto “como os outros”, foi ainda assim um momento caloroso de felicidade musical. Podia ter sido em casa deles, mas não cabia tanta gente; o coliseu serviu, e pareceu pequeno.

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