Um esteticismo exasperado

A poesia de Alberto de Lacerda exprime um ideal de poesia que se satisfaz, com grande comprazimento, nas operações bem reconhecíveis do lirismo clássico.

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Labareda: a poesia de Alberto de Lacerda situa-se do lado do sentimento em estado superlativo, de um patético que está sempre a transbordar e não se contém nos limites do equilíbrio e do rigor formais Scott Laughlin, Nova Iorque, 1994

Quanto aos seus lugares biográficos, Alberto de Lacerda esteve sempre afastado do centro onde a recepção e a canonização da poesia portuguesa têm uma vida mais fácil: o poeta nasceu na Ilha de Moçambique em 1928, veio para Lisboa em 1946, mas em 1951 foi viver para Londres. Este “exílio”, celebrado no título de um dos seus livros, durará até ao fim da sua vida (2007) e compreende uma extensão nos Estados Unidos, primeiro em Austin e depois, mais longamente, em Boston (em ambos os casos, para leccionar em universidades). Esta condição de exilado pode tornar-se um argumento para explicar uma outra condição que o autor e prefaciador desta antologia, Luís Amorim de Sousa, resume numa fórmula canónica: “poeta injustamente esquecido”. Mas esta meritória antologia mostra que essa “injustiça” tem razões de fundo, de ordem puramente literária: Alberto de Lacerda pertence a um tempo da poesia portuguesa marcado por uma constelação de poetas muito fortes, as suas circunstâncias geracionais colocam-no numa paisagem literária imponente, feita de grandes experiências inovadoras. E, aí, ele aparece como um poeta interessante, mas de uma dimensão que não pode ser comparada à dos seus pares que deram uma configuração excepcional à poesia portuguesa da segunda metade do século XX. Esta antologia tem um título, Labareda, que ilustra bem como a poesia de Alberto de Lacerda se situa do lado da transparência do sentimento em estado superlativo, do lado de um patético que está sempre a transbordar e não se contém nos limites do equilíbrio e do rigor formais.

Tal como o descreve, no prefácio, Luís Amorim de Sousa, Alberto de Lacerda é um poeta que viveu em estado de poesia permanente: não só “correspondia em pleno à ideia que se tem de um poeta”, mas também “tudo tinha expressão poética no mundo íntimo de Alberto de Lacerda”. Um poema intitulado precisamente Poesia, que aparece já no final da antologia, entre os inéditos, ilustra bem esta permeabilidade: “Fio condutor da minha vida/ Do princípio ao fim/ Tivera eu ou não/ Escrito uma palavra// Não há diferença alguma/ Entre a criança deslumbrada com a luz africana/ E escrever este poema/ que é meu e não é meu”. Esta ideia de uma poesia anterior a tudo, que para o ser nem precisa de um acontecimento de linguagem, é uma mitologia que persiste numa ideia muito comum de poesia, cheia de consequências na poética de Alberto de Lacerda. Tais características formam o perfil de um poeta-esteta, certamente sedutor; mas esta disposição poética de onde brotam os poemas é também um limite a que eles ficam subordinados e que lhes dita o alcance. O que daqui resulta, muitas vezes, é uma poesia poetizada, no sentido em que podemos também falar de uma arte estética (sem com isso estarmos a designar algo da ordem do kitsch), em permanente celebração de si própria e procurando uma impossível intemporalidade. Daí, a melancolia que é o seu ditado: ela está sempre em perda em relação a si própria, fatigada nessa perseguição do ideal da poesia. Este esteticismo poético confere à poesia de Alberto de Lacerda uma enorme delicadeza. Tudo é equilíbrio e harmonia sem dissonância, mesmo quando pretender ser expressão do dissonante e da desordem interior. Mas, em geral, ela tende para um auto-erotismo da poesia (ou, o que é quase o mesmo, para uma essencialização da poesia) que tem o perfume sedutor de uma certa futilidade e alguma inocência: “Prazer. Mais do que isso. A pureza de uma tarde de sol sem humidade nem nuvens/ Deserto. Não propriamente deserto./Mas o tumulto estático da areia infinita.// Corpo. Não propriamente um corpo./ Um elo. Um anel não fechado.// Um homem./ Não propriamente um homem./ Um deus.// Exactamente um deus.”

O lirismo elegíaco é a pátria a que pertence convictamente e sem hesitações ou suspeitas esta poesia. O seu ideal é ser a síntese de uma música – uma música muito espiritual, mesmo quando se trata das coisas do corpo. Os deuses – os deuses pagãos – estão por todo o lado, são as figuras de invocação e de evocação sempre presentes, assinalando uma orientação muito espiritual e intemporal desta poesia. Ela pode nascer das contingências temporais do vivido e fazer referência a lugares e datas. Mas é sempre à universalidade, à intemporalidade que ela aspira. E, aspecto importante, aspira também à expressão da totalidade, como toda a poesia clássica, e, para isso, precisa que toda a realidade se torne uma abstracção. Mesmo quando se trata de um poema sobre um lugar biográfico identificado, como é este poema intitulado Austin: “Há qualquer coisa de divino aqui/ Uma brisa que vem não sei de onde/ Um instinto de paz e de alegria/ Um espaço vasto majestoso e simples/ Uma doçura nas gentes (...)/ Uma brisa de luz doirada/ É tão antiga/ Que nos murmura/ Aos ouvidos mortais e encantados/ Paraíso/ paraíso”.  O ideal neo-clássico de Alberto de Lacerda é todo ele feito do equilíbrio, harmonia e quietude. É um ideal apolíneo que nem um vestígio dionisíaco vem perturbar. É esta boa consciência da luz e da forma - aspiração a um ideal classicizante que nada mais informe, nem sequer uma suspeita, vem perturbar - que limita bastante esta poesia, dando-lhe o aspecto de um esteticismo exasperado.

Evidentemente, a suportar toda esta metafísica está o primado da metáfora. Tudo aqui é deslocação e transfiguração metafóricas. A metáfora é a rainha absoluta, o instrumento de todas as operações expressivas, a garantia de que tudo tende para a abstracção: “Quando em silêncio o teu olhar dizia/ O que a tua boca recusava à minha/ O ar incendiava-se e feria/ De fogo a própria vida”. É visível nesta exasperação metafórica o sintoma de uma grande complacência relativamente a uma ideia de poesia que segue as vias mais sinalizadas. Mas, para além disso, há as metáforas obsessivas, que acabam por ficar cristalizadas e perderem toda a vitalidade. É o caso das metáforas do vento, da luz e do fogo, que atravessam desde o início a poesia de Alberto de Lacerda e que acabam por se tornar a sua reserva retórica, um pouco inerte.

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