A moção do PSOE contra o Cidadãos

Até há uns meses, a obsessão de Sánchez era o Podemos. Desde há semanas, é o forte avanço do Cidadãos.

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É difícil medir o alcance da moção de censura do PSOE ao Governo de Mariano Rajoy. Em primeiro lugar, é uma jogada táctica com vários alvos. Visa, naturalmente, o Partido Popular (PP), no auge do descrédito após o escândalo Cristina Cifuentes e, sobretudo, com a sentença de quinta-feira sobre o caso Gürtel, em que o próprio partido é condenado por corrupção. Visa também pôr em xeque o partido Cidadãos que, votando contra, será acusado de manter Rajoy no poder. É, enfim, uma tentativa de Pedro Sánchez para voltar ao centro da agenda política após um longo eclipse. Noutra frente, tenderá a acelerar o confronto entre o Cidadãos e o PP, que disputam a primazia nas eleições.

Por trás das tácticas estão duas pesadas realidades que condicionam o jogo político: o descrédito das instituições e o fim do bipolarização partidária. Hoje joga-se num tabuleiro de quatro actores, completado por um leque de partidos menores cujos votos são decisivos para formar maiorias.

PP, Cidadãos e PSOE

Será difícil a Sánchez reunir a maioria de 176 deputados. Mas não é impossível. A maioria dos analistas aposta em 2019 como o ano de todas as eleições: municipais, regionais, europeias e legislativas. Mas a ressaca do caso Gürtel pode alterar estes cálculos. O PP está na defensiva. A maioria das sondagens aponta a sua ultrapassagem eleitoral pelo Cidadãos, de Albert Rivera. Este facilitou a aprovação do Orçamento, com o apoio do Partido Nacionalista Basco (PNV). Mas a relação entre o PP e o Cidadãos é de aberta competição.

Basta olhar as sondagens. Segundo os dados da Metroscopia (no El País), cerca de 25% dos eleitores do PP pensam votar no Cidadãos nas próximas eleições e 77% aprovam a acção do partido de Rivera. Julgam o Cidadãos mais apto para combater a corrupção e regenerar a democracia. Em suma, Rivera está a ocupar parte da base eleitoral do PP.

Esta tendência não se deve apenas à incapacidade de o PP eliminar o fardo da corrupção. A crise catalã foi um momento de viragem. O Cidadãos mostrou que podia vencer eleições. As sondagens registaram a mudança. Votar Rivera já não é desperdiçar votos. Nas últimas semanas, o Cidadãos fez uma “correcção” de linha, apontando para um maior nacionalismo (na relação centro-periferia) e acentuando o seu pendor “tecnocrático”.

“Por seu lado, o PP perdeu a liderança, é incapaz de manter na agenda os temas que lhe interessam e de fazer propostas próprias que lhe permitam diferenciar-se”, declara ao El País a politóloga Berta Barbet. Ao contrário, o Cidadãos tem sabido impor os temas que lhe interessam, da crise catalã à corrupção.

Ontem, Rivera deu a entender haver a possibilidade de uma “declaração de guerra” ao PP: “Espanha não se pode permitir continuar com um governo débil, necessitamos de um [governo] forte e legitimado.” Isso não quer dizer que queira precipitar as eleições. E, muito menos, através de uma iniciativa do PSOE e com o apoio do Podemos.

Olhemos para o PSOE: “Até há uns meses, a obsessão de Sánchez era o Podemos. Há semanas, a sua preocupação é o forte avanço do Cidadãos”, escreve Enric Juliana no La Vanguardia. Pablo Iglesias, líder do Unidos Podemos, apostou na estratégia de “sorpasso” do PSOE, de modo a conquistar a hegemonia da esquerda. O “sorpasso” falhou. Mas agora irrompe o Cidadãos a ameaçar anular o estatuto do PSOE como alternativa ao PP.

Observa Juliana: “O PSOE tem agora a possibilidade de reaparecer no ecrã dos radares apresentando uma moção de censura. Esta iniciativa apresenta, no entanto, um sério problema estratégico para Sánchez: poderia chegar a ganhá-la.” Ou seja, como iria governar Sánchez, durante uns meses, com todos os apoiantes da sua moção de censura?

A crise de confiança

Em 2005 ou 2006, 57% dos cidadãos declaravam estar satisfeitos com o funcionamento da democracia espanhola e confiavam nas instituições, lembra a politóloga Marta Romero. O quadro começa a mudar em 2008 e, a partir de 2013-14, agrava-se drasticamente. “A desconfiança passa a ser crónica”, escreve no site Piedras de Papel. E explica: “A perda de confiança nas instituições não começou com o aumento da preocupação com os escândalos de corrupção e fraude que tanto protagonismo tiveram nos últimos cinco anos, mas com a perda de confiança na classe política e, por extensão, na política para fazer frente à crise económica.”

Em 2014, o sistema político espanhol entrou em colapso, sob o impacto de três crises entrecruzadas: a económica, a da credibilidade dos partidos e a da Catalunha. O resultado foi o fim do bipartidismo e a entrada em cena do Podemos e do Cidadãos. O jogo político multipartidário é muito mais complexo e incerto. “A paisagem eleitoral apresenta uma notável fluidez, com possíveis transvases [de] eleitores em praticamente todas as direcções”, escreveu em 2015 José Joan Toharia, presidente do instituto de sondagens Metroscopia. Este quadro permanece actual.

Uma nota final. As instituições europeias, a braços com a novíssima experiência italiana, dispensavam um susto em Espanha. Mas é um equívoco. O voto de censura pertence ao domínio da táctica e não anuncia “revoluções”. É aconselhável aguardar as eleições.

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