Esteva invade serra do Caldeirão, eucalipto renasce em Monchique

A campanha das limpezas dos terrenos soma e segue, mas há dúvidas quanto à eficácia em caso de incêndio: “Oxalá o fogo não apareça”, desejam os produtores florestais.

Florestas de abetos, Árvore
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Nas serras algarvias, há quem ainda tente desfazer-se dos terrenos ardidos. Enquanto, noutras zonas, a vegetação despontou rapidamente Rui Gaudêncio
Floresta de coníferas temperada, floresta
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Rui Gaudêncio

A serra do Caldeirão arde sem se ver, no lume brando que ditou o abandono do território. O último incêndio ali ocorrido deu-se há seis anos. Das cinzas, renasceu a esteva – espécie altamente inflamável. Na Primavera, um manto verde espalha-se pelo ácido solo xistoso que, no Verão, vira terreno fértil para os fogos. As sobreiras, outrora as “rainhas” dos montes,  morrem de pé, e assim permanecem como esqueletos a assombrar a paisagem. “O meu pai tirava 3 mil arrobas de cortiça por ano, eu já só levo mil”, refere Manuel Pires, um produtor que resiste à tentação de não virar costas às propriedades que herdou. O montado de sobro está desaparecer, dando lugar às acácias e outras invasoras.

 Os fogos que, ciclicamente, atingem esta zona cada vez mais despovoada só vêem acentuar um fenómeno visto como fatalidade natural. O interior do país - com destaque, neste caso, para o Algarve onde não há praia -  parece estar condenado às catástrofes. As memórias dos grandes incêndios de 2004 e 2012 ainda estão vivas – não houve mortes, mas perderam-se habitações e os meios de subsistência, gerados a partir da floresta. “Oxalá, o fogo não apareça”, diz o presidente da Associação de Produtores Florestais da Serra do Caldeirão, Gilberto Pereira, lembrando que o desbasto dos matos que está a ser levado a cabo, por privados e entidades públicas, a bom ritmo, não resolve o problema de fundo. “Só uma floresta produtiva, garante a sustentabilidade do território”, sublinha, relacionando este facto com o despovoamento. O Plano Regional do Algarve (PROT), recorda, “proíbe a construção em solo rural, ignorando o que pode representar a fixação de pessoas na valorização das zonas de baixa densidade”. Na serra de Monchique, o retrato é idêntico, com uma diferença: o eucalipto é a árvore dominante, com 13.888ha (72,4%) da área florestal do concelho. O sobreiro fica-se por 2.210 hectares, menos de metade do medronheiro (4.679 ha).

Falta de fiscalização

No alto da serra encontra-se o Miradouro do Caldeirão. Uma vez alcançado este sítio, fica-se com a sensação de ter dobrado o Cabo das Tormentas, depois de uma viagem pela  serpenteada Estrada Nacional (EN)2 em direcção à freguesia do Ameixial, a caminho do Alentejo. À beira da via, gerida pela Infraestruturas de Portugal (IP) encontram-se montes de ramagem seca, deixados ao abandono, após as limpezas das faixas laterais da estrada. A lenha grossa foi retirada, ficando no terreno, pronto a pegar fogo, os restos que não tinham valor comercial. No dia 24 de Março, - no âmbito da campanha nacional pela limpeza da floresta, com o Presidente da Republica e os membros do Governo no terreno -  o primeiro-ministro deslocou-se ao Ameixial (sítio dos Vermelhos), para dar o “exemplo” do que queria que fosse feito no país. As obras arrancaram a partir dessa altura, em força, mas a fiscalização não apareceu. “Duvido que se cumpra à letra, tudo o que está previsto na lei”, observa Pedro Jesus, engenheiro florestal, lembrando o óbvio:  não se pode cortar a eito, sem ter em conta a especificidade de cada lugar e os habitats.

“A campanha foi mal conduzida”, enfatiza. A partir do que estava escrito nos folhetos, divulgados à população, “houve quem começasse a cortar tudo, incluindo o abate desnecessário de árvores de fruto”. Porém, elogia, “criou-se uma certa dinâmica, e as pessoas estão mais despertas para a defesa da floresta – é preciso não regredir”, apela. O concelho de Loulé ainda não tem o cadastro concluído. “Outra das razões que estrangula o trabalho nas Zonas de Intervenção Florestal (ZIF)”, onde existem propriedades que não se conhece os donos.

Monchique, um concelho condenado a apagar fogos

No concelho de Monchique, o último incêndio ocorreu em 2016 - arderam 1818 hectares. O eucalipto é a espécie dominante, mas não é motivo de tanta preocupação quanto os sobreiros do Caldeirão. “A gestão é planeada e ordenada de forma a que haja meios de defesa, em caso de incêndio – à partida, causa menos preocupações”, diz o presidente da Câmara, Rui André, realçando que o município criou uma “boa rede” de caminhos rurais para responder às situações de perigo: “São muitos anos a apagar fogos”, diz, a lembrar a experiência do município para lidar com estas situações.

A habitação em espaço rural, - existem 120 aldeias espalhadas pelos montes e vales -, constitui a principal coluna do gráfico que assinala as zonas de perigo, identificadas pelo gabinete florestal do município.“ No próximo mês, vamos começar a preparar as pessoas para adoptarem medidas de segurança em caso de incêndio, a par das campanhas de sensibilização que temos vindo a adoptar”. A falta de meios do ICNF e o centralismo burocrático, de que se queixam os produtores florestais do Caldeirão, repete-se em Monchique: “Achamos que era possível agilizar os processos”, refere Sónia Martinho, engenheira florestal da autarquia, lembrando que a câmara ajuda os agricultores no preenchimento dos formulários, mas a autorização para o abate de árvores vem do ICNF. À câmara municipal, informou o presidente Rui André, chegaram menos de uma dezena de autos, levantados pela GNR.

Por seu lado, o presidente da Associação de Produtores Florestais do Barlavento Algarvio, Emílio Vidigal, - evocando uma experiência de 45 anos de trabalho, enquanto técnico florestal -, critica a forma como estão a ser aplicadas as medidas de prevenção contra incêndios. “Se tivesse sido cortado o mato em Fevereiro, com o que choveu nos últimos dois meses, de nada serviria as faixas de protecção que mandaram fazer”. O que falta, diz, “é a presença humana e o pastoreio”. No entanto, considera que as medidas que foram adoptadas pelo Governo, tiveram “resultados positivos” no que diz à criação de uma consciência colectiva, para a necessidade de preservar e defender o espaço rural. Porém, deixa um alerta para o conjunto de leis impostas aos proprietários: “Quanto mais obrigações, mais as pessoas se afastam do interior”. Os particulares são obrigados a limpar 50 metros em volta das casas, criando um perímetro de defesa, e 100 metros nos aglomerados.

Os grandes fogos de Monchique ocorreram em 2013 e 2014. Nestes dois anos, quase todo o concelho ficou reduzido a cinzas – 45 mil hectares de floresta ardida. A natureza renasceu, mas o perigo de voltar a arder não se afastou. “Fizemos o trabalho de casa”, diz o comandante operacional distrital, Vaz Pinto, referindo-se ao planeamento que tem vindo a desenvolver, e aos meios que tem para intervir, em caso de fogo. Emílio Vidigal defende a necessidade de ser dada prioridade à prevenção, mas de forma racional: “Estive em reuniões com o ICNF e a GNR sobre a forma como se deve dar cumprimento à legislação, e não existe entendimento na interpretação das directivas”. O técnico florestal, diz, acha que deve imperar o bom senso, e não é apologista do corte das copas para manter as árvores afastadas quatro metros entre elas. Já um militar da GNR foi peremptório: “Se estiveram a 3,80 metros, levanto o auto”.

A multiplicação das invasoras

Da Associação de Produtores Florestais da Serra do Caldeirão, o engenheiro Pedro Jesus lembra três ou quatro  “pontos negros” que permanecem, apesar das limpezas que estão em marcha, quer pelo lado dos proprietários, autarquias e associações de caçadores. Só da câmara de Loulé vão ser investidos meio milhão de euros nestas acções. Das zonas mais problemáticas deste concelho, caracterizadas por declives acentuados e muito vegetação, encontram-se a Quintã, Carrasqueiro e todo o vale que vai ter à Portela do Barranco, passando pelo Barranco do Inferno, na freguesia de Salir. Do outro lado dos montes, na freguesia de Querença, encontra-se o Cepo, onde estão as antenas de empresa de telecomunicações Nos, mas também toda a faixa que se estende até ao concelho de São Brás de Alportel. Depois há um problema adicional. As espécies invasoras, acácias e as giestas, que apenas se encontravam de forma pontual no Caldeirão, “estão a multiplicar-se de forma brutal - quando se corta ou apanham fogo, na fase seguinte, propagam-se ainda muito mais”. À saída do Barranco do Velho (concelho de Loulé), em direcção ao Javali, no concelho de São Brás de Alportel, as acácias já formam um túnel a cobrir a estrada do interior. Por esta zona correram os grandes incêndios de 2004, quando o fogo lavrou desde a serra de São Barnabé (Alentejo) até ao Caldeirão. A tragédia saldou-se, entre outros prejuízos, pelo desaparecimento de uma das manchas mais significativas do montado de sobro, donde se extrai a cortiça para as rolhas do famoso champanhe francês Moet e Chandon. Em 2012, os grandes incêndios repetiram-se, tendo o fogo chegado aos Montes Novos, ponto de encontro de três concelhos: Loulé, São Brás de Alportel e Tavira.

Ainda do lado de quem gere a floresta, Gilberto Pereira acha – tal como o colega de Monchique, Emílio Vidigal - que o problema dos fogos  “só pode ser mitigado com uma produção florestal rentável, a médio e longo prazo”. No caso da serra do Caldeirão, defende, “a espécie autóctone é sobreiro, mas está desaparecer”. A esteva tem vindo a conquistar o território de outras espécies, perde-se a biodiversidade, o terreno fica mais pobre, e assim ano após ano, cresce o perigo dos incêndios. “O território perdeu sustentabilidade, as pessoas desapareceram do campo”, enfatiza.

A associação que representa tem a responsabilidade de gerir quatro Zonas de Intervenção Florestal (ZIF), nos concelhos de Loulé, São Brás de Alportel e Tavira, com uma área de cerca de 12 mil hectares. As candidaturas apresentadas pela associação ao Plano de Desenvolvimento Rural (PDR) 2020 em 2015, só foram aprovadas em 2017. Sobre a rede primária, limpeza de mato ao longo das vias, com faixas de 60 metros para cada um dos lados, são cerca de 400 hectares que tem de estar concluídos até final de Maio. “Acho que vamos conseguir”, prevê. Rui André, autarca social-democrata, elogia Governo, nesta área: “Teve o mérito de inscrever a questão da floresta como tema nacional, infelizmente depois de morrerem pessoas”. De futuro, entende que este tema deve continuar nas agendas políticas, sendo obrigatório retirar consequências dos autos levantados aos incumpridores: “Se não houver punição, as autoridades não têm capacidade para fazer o seu trabalho – vamos andar uns anos para trás”.

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