São 6 da manhã e estou na fila para a Segurança Social

A vida endurece-nos e às 4h30 já estou à porta do Areeiro. Quando, horas mais tarde, sou atendido, fico a saber a verdade: não tenho direito ao subsídio de desemprego. Diz-me a senhora por detrás dos óculos por detrás do balcão que não fiz descontos suficientes. Mas eu fiz. Então pode fazer uma reclamação. E eu quero fazer uma reclamação, mas hoje já não há senhas

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Ricardo Silva

São 6 da manhã e estou na fila para a Segurança Social do Areeiro.

São sempre 6 da manhã e ainda estou na Segurança Social do Areeiro. Na verdade, nunca saí de lá. O que é que eu estou aqui a fazer? Não sou o primeiro da fila. Pelas conversas, já há quem aqui esteja desde as 4:30 da manhã. A Segurança Social abre às 9.

São 6 da manhã e não sei muito bem como vim aqui parar. Não moro aqui e não há transportes tão cedo. Ah sim, dormi em casa dos meus avós e o meu avô ainda é vivo. A Segurança Social abre às 9. Sim, já o disse, mas ainda faltam três horas e não há nada para fazer.

Faz frio. Tenho um walkman e, para não gastar pilhas, ouço rádio. 7h20 e da camioneta sai a Sra. Maria, a mãe do Miguel. Faço de conta que não estou aqui, não quero estar aqui, tenho vergonha de estar aqui. Porque é que eu estou aqui? Ah, sim, o subsídio de desemprego. Estou desempregado. A mãe do Miguel acena-me, vem falar comigo, dois beijos, está tudo bem, vai-se embora, vai trabalhar. A mãe do Miguel trabalha numa escola. Eu gostava de trabalhar numa escola. Sou professor. Tenho uma Licenciatura em Ensino.

Às 8 da manhã há centenas de pessoas na fila para a Segurança Social do Areeiro. Cinco pessoas atrás de mim e reparo no Bruno. Diz-me que agora é campeão nacional de tiro ao arco e o treinador dele é um ex-agente da Stasi. De caminho tem 6000 euros no banco e só veio à Segurança Social porque se esqueceu de “uns papéis”. Eu também sou campeão nacional de tiro ao arco.

Às 8h45 duas senhoras vêm abrir a porta. Conversam animadamente, despreocupadamente. 8h55 e somos dezenas colados à porta. Acabei de beijar o vidro, contra o vidro, esborrachado. As portas abrem e eu tropeço e caio para o lado. Um segurança à porta tenta (“tenta“ é o verbo) impedir a entrada das pessoas e quando, finalmente, chego às senhas de atendimento já não há senhas. Amanhã, diz-me o segurança, e sorri.

O segurança tem emprego. Não me importava de ser segurança.

Mais uma noite mal dormida e os meus avós mal dispostos. O meu avô, diligente, insiste em acordar-me às 4, apesar do despertador. Hoje já não vejo a mãe do Miguel ou o Bruno. Ou faço de conta. A vida endurece-nos e às 4h30 já estou à porta do Areeiro. Três pessoas à minha frente. Quando, horas mais tarde, sou atendido, fico a saber a verdade: não tenho direito ao subsídio de desemprego. Estou f...

Diz-me a senhora por detrás dos óculos por detrás do balcão que não fiz descontos suficientes. Mas eu fiz. Então pode fazer uma reclamação. E eu quero fazer uma reclamação, mas hoje já não há senhas.

Vou para o Centro de Emprego de Almada. Digo adeus aos meus avós e vou para o outro lado do rio. De qualquer maneira tenho de ir para casa, e o Centro de Emprego fica no caminho. Hoje já não atendem ninguém, mas nesta altura ainda não há net ou telefones espertos, e se houvesse de pouco me valeriam. Não tenho dinheiro. Abre às 9h.

No dia a seguir estou no Centro de Emprego às 6h. Inscrevo-me. Não há emprego para professores. Para professores tenho de me inscrever no Concurso Nacional. Eu sei, mas não há emprego, e por isso é que estou aqui. Pedem Formadores. Candidato-me e, passado uma semana, sou escolhido para um Centro de Formação. Não consigo acreditar na minha sorte. Telefono para ti, telefono à minha mãe, aos meus avós. Chego a casa e conto à minha irmã.

No dia a seguir telefonam-me do Centro de Emprego: afinal já não há formação, cargo de Formador ou emprego. A correr para Almada. A senhora que me atendeu não se sabe explicar, dá o dito por não dito e a minha irmã entra ao barulho. Discussão acesa. Ao que parece o cargo de Formador sempre existe, mas não é para mim.

De volta a casa recebo um novo telefonema. O Sr. Director do Centro de Emprego quer encontrar-se comigo. Na reunião o Sr. Director pede desculpa: foi tudo um mal entendido e assim que surgir uma nova oportunidade, entram em contacto comigo. Até hoje comeram-me por parvo.

Os anos passaram-se. Emigrei. Como em Inglaterra não sabem o que é um B.I. [vulgo Bilhete de Identidade, antes do C.C., vulgo Cartão de Cidadão], tenho de pedir o passaporte. São 6 da manhã e estou à porta da Loja do Cidadão nos Restauradores. Já vi este filme. Hoje também não há senhas. Mais um dia e mais uma noite mal dormida. O que vale é ser Agosto e estar de férias.

Já emigrei há 1 ano. São 6 da manhã e estou à porta da Loja do Cidadão nos Restauradores. Quando, finalmente, chega a minha vez, a mesma senhora por detrás dos mesmo óculos por detrás do mesmo balcão diz-me que a máquina não funciona, está a dar erro de ligação, se puder volte amanhã, por favor, talvez tenha mais sorte.

Sorte, então é isso, é tudo uma questão de sorte. Já devia saber, digo de mim para mim mesmo enquanto lanço as mãos à cabeça. Sem passaporte não consigo entrar em Inglaterra.

Consegui entrar em Inglaterra, mas vou ter de ir ao Consulado Português tratar do passaporte. Como entretanto os anos passaram, já tenho net e o consulado já tem site. Faço marcação pelo site e perco um dia de trabalho. É quinta-feira e vou de bicicleta para o centro de Londres. Não devia ter ido de bicicleta.

De capacete, colete fluorescente e calções, sou interrogado à porta pelo segurança de uma discoteca (só pode). Tenho marcação, explico. Pelo site? O site não funciona, diz-me o segurança num esgar. Pergunto se posso marcar para outro dia. Só pelo telefone, responde. Peço o número mas o segurança manda-me ver na net e não me deixa entrar. Bem-vindo a Portugal.

Tive de perder mais um dia de trabalho e, depois de telefonar, volto passado um mês. Desta vez fui à civil, sem bicicleta.

Não há gente à porta e não foi preciso chegar às 6 da manhã. Mas a sala de espera está cheia, a abarrotar de gente sentada e em pé, crianças que choram, olhares inquietos. Quando chega a minha vez perguntam-me se já mudei a minha morada para Inglaterra. Aparentemente, é preciso primeiro mudar a morada. Onde é que eu faço isso? Na Junta de Freguesia da minha área de residência. Mas sem passaporte não consigo voltar a Inglaterra.

Estou a começar a passar-me.

Nunca mais voltei a Portugal. De cada vez que a minha irmã me diz pelo Whatsapp que tem de ir à Segurança Social, tenho calafrios. Entretanto já tenho a cidadania britânica e o respectivo passaporte, pelo que agora já posso gastar libras à vontade por esse mundo fora. Já fui à África do Sul, mas não voltei a Portugal. Entretanto, fiquei a saber que, à data da minha partida, devia ter notificado as finanças, estando sujeito a uma daquelas multas por cada ano acumulado. E já lá vão 10.

Como se já não bastasse ter tido de emigrar. Voltei para Portugal. Isto também se pode escrever “Como se já não bastasse ter tido de emigrar, voltei para Portugal”. Entro na Repartição de Finanças para de imediato encher os pulmões com o bafio de séculos onde os mesmos funcionários de há 40 anos se arrastam entre andarilhos e “égiros” enquanto se tossem “câncaros” e dentaduras postiças por todo o lado. Com um braço protejo a cara e, por detrás do cotovelo, peço uma caderneta de recibos verdes onde, prontamente, colo os cromos do Futre e do Artur Jorge.

Fui à procura de trabalho. Agora sou um trabalhador independente e tenho contribuições em atraso. São 6 da manhã e estou na fila para a Segurança Social.

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