Cambraia

Uma vez por semana, vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa

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Adriano Miranda

Veio a noite, e a coisa complicou-se. Melhor: vem a noite e a coisa complica-se. É maldição antiga já, que não vou tentar explicar porque me falta tanto o tempo como o modo. Apoio-me na presença familiar, na companhia dos livros e nas esperanças de veludo. E nas luzes dos archotes e dos candelabros que reforçam uma instalação eléctrica de competência intermitente, ainda do tempo dos fios de cobre revestidos a guta-percha, dos interruptores de porcelana giratórios, das peras de ligar e desligar a luz do tecto a partir da cama. Tudo para renovar, como o telhado.

Veio a madrugada, e sosseguei. Assim que a claridade deu prova de que o dia se tinha montado, de que as esferas celestes prosseguiam nos seus movimentos sucessivos imemoriais, tocando a música cósmica que não se ouve, mas que alguns pressentem, o sono passou a ser possível de manhã, para recuperar da noite mal dormida.

Depois do almoço, falaríamos de transparências, ouviria falar dos tecidos mais finos que se têm inventado desde a antiguidade, ou o que deles nos resta hoje, de preferência sem a contribuição dos polímeros, dos plásticos, das fibras artificiais derivadas do petróleo, abdicando talvez das cores que, ao longo dos séculos, se foram apurando em terras inacessíveis para realçar a preciosidade dos artigos que dali nos enviaram, aliando tons de fantasia a materiais de maravilha fabricados por processos misteriosos. Escolhidos os reposteiros de veludo amarelo, só antevia cortinas daquele branco que é um ideal de tábua rasa, de ponto de partida sem retrocesso, da luz primordial aparecida quando quem podia disse: “Faça-se!”.

Soavam ainda as badaladas das três da tarde no relógio da torre quando, à porta do meu espaço bibliomaníaco, com um gesto de mão complementar do do antebraço que muito bem lhe ficou, o meu mordomo Galhardo deu passagem à decoradora Joaquina, a quem eu, por graça, tinha pedido para chamar Xerazade, mas que tinha ficado sem efeito perante o seu desarmante sorriso giocondístico. Afastando ou empilhando os livros e alguns calhamaços que ocupavam a mesa grande, criei à última hora a necessária clareira para que nela pudesse depositar, a minha convidada, os seus álbuns e estojos de amostras de extremidades não lisas, como as folhas dos livros, mas curiosamente denteadas.

Havia que escolher, entre os tecidos finos, os que se iluminassem sem deixar passar o sol. Ouvi falar de beleza, toque, caimento, resistência, facilidade de lavagem, mas o que eu procurava com verdadeiro empenho, mais do que os tecidos, muito mais, eram os nomes, as palavras com que se designam, que têm história e significados, alguns deles perdidos, que nos ensinam as viagens que fizeram a acompanhar os antigos bens de luxo, às vezes desde as origens, outras desde os centros em que aprenderam a produzi-los ou a distribuí-los em massa. Mesmo nada percebendo de tecidos, há nomes que moram em nós como realidades à parte que não precisam de materializar-se – por vezes nem podem – para serem mais reais, já que nada pode ser mais perfeito do que a construção simbólica de cada um.

Quando os tais nomes começaram a aparecer, dei o meu contributo para a discussão acrescentando às características técnicas de tal e tal material uma explicação breve do seu significado ou origem. Assim, falou-me a minha convidada em seda, linho, algodão e eu fingi não reparar; mas, quando me falou em cetim, que também é seda, mas lustrosa, disse-lhe que a palavra vinha de Zaitun, nome da cidade da China onde aparentemente se tinha inventado aquela forma de tecer e que parece corresponder à actual Sinquião (Xinjiang).

Já que se fala de seda, o que me podia dizer do tafetá? Também não era de seda? Sim, podia ser de seda, mas também de algodão (popelina), pois tafetá não designa material, mas uma urdidura, uma técnica têxtil, tal como, para dar outro exemplo, a sarja, que é um tecido entrançado, em diagonal, de seda, lã ou algodão. A ganga é um tipo de sarja de algodão em que se acrescenta um fio anil cujo corante fica apenas à superfície, deixando o interior branco. Quando, por atrito de uso e de lavagem, a superfície anil é retirada, as calças de ganga passam do azul para o branco.

Muito interessante. Mas acrescento eu: tafetá derivou do persa “taftan” (que quer dizer tecer); sarja vem do latim “sarica” (de seda), e, já agora, a palavra inglesa “denim”, que designa ganga, vem da redução da expressão “sarja de Nîmes”, cidade francesa onde se produzia o tecido (“de Nîmes”, francês, passou a “denim”, inglês).

Continuou: as cortinas podiam ainda ser de xantungue (da província chinesa de Xantum), tule (do francês “tulle”), cassa (do malaio “kasa”), organdi (do francês), crepe (do latim “crispu”, crespo), cretone (de Creton, localidade francesa), chita (do sânscrito “chitra”, matizado), linho (do latim “linu”). Por fim, referiu a musselina, palavra que eu esperava e que, tal como tafetá, seda, cetim, organdi, evoca lugares imaginários, tapetes voadores, o ladrão de Bagdad, o Ali Babá e os Quarenta ladrões, o Sindbad, o Marinheiro, as odaliscas, as “Mil e Uma Noites”, a Xerazade. Musselina – com um nome desses só poderia ser mágico – quer dizer “pano de Mossul”, aquela Mossul do Iraque que ainda há pouco estava em poder de uns e passou para o poder de outros, rebentada pela guerra que por lá anda. Tal como no caso de Bagdad, tal como no caso de Damasco, quando lá voltará a paz para os seus cidadãos e para os visitantes, o que restará da história e dos nomes destas e de outras coisas?

Faltava-me ainda um nome. Perguntei se podia ser: cambraia. Sim, podia ser. Cambraia de algodão ou cambraia de linho. De cambraia (da cidade francesa de Cambrai) se faziam belas cortinas e finas peças de vestuário. Sim, lembrava-me da letra de “Scarborough Fair”, uma canção tradicional inglesa que conheci na interpretação de Paul Simon e Art Garfunkel e que, além de um refrão de “parsley, sage, rosemary and thyme” (salsa, salva, alecrim e tomilho), incluía, em dado passo: “Tell her to make me a cambric shirt/ without no seam nor fine needlework” (Diz-lhe para me fazer uma camisa de cambraia/ sem costuras nem trabalho de agulha), o que é, evidentemente, impossível. Então, já que não posso ter uma camisa dessas, encomendo umas cortinas.

Satisfeito com a resolução, convoco o chá das cinco para mais cedo. E entre a cor do chá sobre o branco da porcelana e os aromas do pão e dos bolinhos acabados de fazer e das compotas do Verão passado, sonho com o branco da cambraia e com o amarelo do veludo e a vida parece-me risonha. Pelo menos até à chegada da noite. Mais uma. Malvada.

Correio Premente

De Vladimiro Militão, Ordem dos Técnicos de Decoração de Interiores do Sul e Ilhas: “O Conselho Deontológico da Ordem dos Técnicos de Decoração do Sul e Ilhas, reunido em assembleia plenipotenciária, aprovou um voto de protesto pela tentativa de coacção de uma técnica qualificada no exercício das suas funções e por destrato qualificado de identificação atestada por certidão de nascimento de narrativa completa. Mais entende o Magnífico Conselho que o nome Xerazade, que não conhecemos, só pode ter sido inventado com a intenção de achincalhar a eminente Colega, já que não conseguimos encontrar esse nome no dicionário e os que encontrámos não eram dignos de se chamar a ninguém, quanto mais a uma técnica qualificada (por exemplo, xeringosa é a “designação corrente das cólicas abdominais na Índia” no Dicionário da Porto Editora). Por outro lado, não pudemos deixar de notar a semelhança entre Xerazade e “xaropada”, conceito com que, isso sim, os artiguelhos que V. Ex.ª martela (sabe-se lá com que matérias-primas) hão-de estar para sempre associados.”

Estou fora até ao dia 31 de Dezembro de 2023. Para qualquer assunto, contactar Melífluo, Frutuoso, Bonaparte & Associados, Pólo II, Palácio de S. Bento, Lisboa. Não responder (resposta automática).

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