Damasco

Uma vez por semana, vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa

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Voltei ao meu escritório, ao meu castelo, ao meu reino privativo, onde costumo fazer reuniões secretas comigo mesmo, preparatórias de um movimento de massas utópicas que abram caminho à liberdade de se poder perguntar aos portugueses se preferem um rei-presidente a um presidente-rei, um símbolo aglutinador mais forte do que o galo de Barcelos e do que a selecção nacional de futebol, e mais permanente. Não ouvindo, lá de fora, mesmo girando cumplicemente o pescoço, qualquer sinal de uma vaga de fundo reivindicadora dessa auscultação à vontade popular, em aprovação, mas também nenhum eco de um possível ataque de tosse convulsiva por engasgamento dos mais afoitos deputados da nação, em desaprovação, deixo-me estar a gozar a graça de estar sem ir, agora que as âncoras lançadas ao mar neste porto de abrigo se encontram bem fincadas ao primordial rochedo subjacente à minha nau, também ela – muito fidedignamente – de pedra, mas talhada.

Depois da digressão, é boa a sensação de estar sentado no velho cadeirão sem que a sala se mova nem haja comunicações sonoras a cada quarto de hora sobre a necessidade de conservar os cintos apertados, a localização das saídas de emergência, o sobressalto de uma zona de turbulência, a oportunidade de comprar perfumes a preços especiais ou o que fazer no caso de nos cair um escorpião na cabeça ou de nos proporem que cedamos o nosso lugar à companhia de aviação para que possam viajar funcionários seus em lua-de-mel. É bom saber que nada se vai mover, que as paisagens que se vêem da janela não vão mudar, que não teremos de estar dez horas entalados entre uma senhora idosa simpática e uma senhora jovem antipática e que não virá ninguém, quando estivermos a dormir, agarrar-nos pelas pernas e arrastar-nos pelo corredor até à parte da frente do avião para arranjar lugares para o pessoal da companhia aérea, mesmo quando já sobrevoamos o Atlântico. Segurança – não há preço (mesmo em dólares)! Ou por outra, no mundo real presente: mesmo em dólares, não há segurança, seja a que preço for...

Passo um pouco pelas brasas para recuperar das diferenças horárias entre partidas e chegadas e do cansaço das falsas partidas e das falsas chegadas, e acordo pronto a dar os retoques finais ao meu escritório que é o meu centro de trabalho, onde ganho a vida a escrever, tal como o Churchill – não, jovens leitores, não me refiro ao nome do buldogue dos vizinhos do 9.º andar direito, mas ao de um ex-primeiro-ministro inglês que, entre outras realizações, inspirou o grupo de jazz-rock norte-americano Blood, Sweat & Tears, que ainda existe (o Churchill já não, o que nos faz pensar no sentido da vida). Prontas as estantes da minha biblioteca, como sabem os que costumam ler estas crónicas, falta tratar as janelas e as portas de vidro, e mal sabia eu que a decisão de contratar um especialista nestas coisas me iria conduzir a uma nova viagem.

Recebi a técnica decoradora no local do crime que eu tentava evitar que fosse cometido. Quando lhe pedi conselho sobre “umas coisas” que servissem de barreira à insolação das lombadas dos meus livros, notei que reprimiu, com um esgar momentâneo, um sorriso reprovador da minha ignorância na matéria, e começou a defender as suas damas cortinas, os seus (delas) paladinos reposteiros e, de passagem, a aspergir-me com nomes de cores e materiais sonantes e inspiradores. Depois, estragou tudo ao dizer-me que queria descobrir quais os materiais que iam “de encontro ao meu estilo”. Não sei se lhe perdoei menos o querer vender-me coisas contra o meu estilo ou o não ler as minhas crónicas. Expliquei-lhe que preferia coisas que fossem “ao encontro do meu estilo”. Não percebeu a diferença, mas prometeu-me um desconto. E concluiu que do que eu precisava era de damasco.

Eu contrapuz com veludo e mandei chamar a minha mulher, para dar uma opinião sobre o assunto, contanto que me apoiasse. Em breve entrava, sorrateira como só ela sabe ser, a nossa governanta, Zulmira, anunciando que a sua senhora, que por coincidência é minha mulher (o que era bom, porque evitava mais confusões), não se encontrava no castelo, recordando-me que, por aquela altura, estaria a dar uma conferência em Foz de Iguaçu, do lado direito das cataratas, para quem sobe.

Para não dar parte de fraco, respondi: “É claro!”, que é o que se responde quando não se tem nenhuma ideia sobre o que se há-de dizer. Na verdade, a minha mulher dá tantas conferências, participa em tantos seminários, viaja para tantos congressos, tem tantas reuniões, escreve tantos artigos científicos que chego a esquecer-me de que sou casado. Isto é aborrecido porque já aconteceu de nos encontrarmos fortuitamente num corredor a meio da noite e ela começar a gritar por socorro a pensar que eu era um ladrão e eu a correr atrás dela para tentar saber quem era aquela bela mulher a gritar na minha casa, por que tinha fugido de mim e por que se tinha encerrado num quarto tão parecido com o meu. Para tentar convencê-la a abrir a porta, só me ocorreu recitar uma quadra do poeta António Aleixo:

“Sei que pareço um ladrão,

Mas há outros que eu conheço

Que, sem parecerem que o são,

São aquilo que eu pareço.”

A grandiosidade do poeta funcionou mais uma vez, a porta abriu-se e, quando eu me preparava para perguntar àquele ser radioso se me dava a honra de ser minha mulher, ela pareceu reconhecer-me e saudou-me assim: “Ah, afinal, és tu? Pensava que era outra pessoa, o Viriato de Viseu, o chefe dos lusitanos no tempo dos romanos, sei lá... Que grande susto! Também quem te manda deixar crescer essas barbas sem me dizeres nada?...” Fiquei confundido. Viriato, eu?!... Mas ele tinha barbas? Como é que se vai saber, se não havia fotografias e não era fácil encontrar um pintor de retratos nas montanhas onde ele se refugiava?...

Regressei à realidade (fosse ela qual fosse) e pedi à decoradora que voltasse no dia seguinte para uma reunião comigo e que me trouxesse o maior número de amostras de tecidos que pudesse, mesmo os que não são utilizados em decoração, mas que tenham um lugar próprio na história dos têxteis e dos símbolos. “Confie em mim: pode não dar para um artigo científico, é duvidoso que dê para uma conferência, mas é com muitos desses nomes que se tecem sonhos. Esta noite vou investigar as palavras e amanhã fá-las-emos corresponder às amostras dos tecidos reais que nos vai trazer. Vá, não me falhe!...” E apontei, teatralmente, com o braço esticado prolongado por um indicador não menos hirto nem menos afirmativo, para o exterior, para o universo onde ela buscaria retalhos de tecidos que têm nomes de plantas, de animais, de lugares que dão para alimentar a nossa natureza simbólica, nossa, das pessoas, fazendo recordar momentos de vida, sonhos nunca vividos, lugares nunca visitados, quanto mais misteriosos, melhor. A jovem – pois quem, não sendo jovem, se disponibilizaria para uma expedição destas?... – entreabriu as portas de vidro que davam para fora, parou, olhou para trás e fez um gesto largo de despedida com a mão que poderia muito bem sair de “E Tudo o Vento Levou”.

Fiquei a pensar no damasco de Damasco, de que hoje só se fala por guerra, destruição, morte e refugiados, mas que, até há poucos anos, associaríamos à delicadeza de um fruto, ao luxo de um tecido de seda ou à intrigante conversão de Paulo de Tarso, perseguidor de cristãos, no seguidor de Cristo a quem chamam S. Paulo, que se diz que ocorreu na estrada de Damasco. Aguardando o tempo em que voltem àquela terra as riquezas da paz e da hospitalidade, encontro esta descrição: “Damasco – Tecido de seda com desenhos acetinados em fundo não brilhante. // Estofo de lã, linho ou algodão imitando o damasco de seda. // Tipo de tecido que, pela sua composição de efeito de fundo e efeito de desenho, constituído pela face teia e pela face trama de um mesmo ponto, tem a particularidade de ser reversível, apresentando numa das faces o fundo opaco e os motivos brilhantes e na outra o fundo brilhante e os motivos opacos. // Técnica de produção de tecido.”(1)

Está certo, evidentemente, mas acrescento o que a palavra contém – como muitas outras – de dificilmente transmissível, de simbólico, dos significados imaginários adquiridos no momento em que foi pela primeira vez ouvida ou lida e que nunca mais passaram. Nem quero que passem.

(1) “Glossário de Termos Têxteis”, de Manuela Pinto da Costa, in Revista da Faculdade de Letras “Ciências e Técnicas do Património”, Porto, 2004, consultado através do endereço na Internet http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4088.pdf .

Correio Premente

De Adalberto Pancadas, lugar de Tornaleites, freguesia de Espinhal, concelho de Penela: “Acho-lhe piada. O que quer? Cada tolo com a sua mania. Mas agora que me aposentei da minha carreira de técnico oficial de contas, a minha psiquiatra aconselhou-me a distrair-me o mais possível de 38 anos a olhar para números e desde que descobri as suas crónicas tenho melhorado e já consigo mesmo sair à rua para ir ao café ou ao supermercado. Acontece que no meu livro da quarta classe de 1962 havia um poema chamado 'Vozes dos animais', da autoria de já não sei quem era, mas que me impressionou a pontos de me vir à cabeça a cada passo, principalmente – e isto é que é curioso – quando vejo transmissões de debates da Assembleia da República ou intervenções de certos comentadores políticos, comentadores-políticos, políticos-comentadores e ex-políticos comentadores. Não sei onde pus o raio do livro, mas o meu neto localizou-me o poema num instante na Internet – esta juventude é danada. Como penso que não conhecerá o tal poema, quer porque desapareceu dos manuais escolares, quer porque não o tenho encontrado em nenhuma colectânea de poesia contemporânea, aqui o envio para ver se os seus leitores reconhecem algumas semelhanças com as vozes que nos entram em casa pela janela da televisão sem dizer ‘água vai!’:

‘Vozes dos Animais’

De Pedro Dinis.

Palram pega e papagaio

E cacareja a galinha

Os ternos pombos arrulham

Geme a rola inocentinha

Muge a vaca, berra o touro

Grasna a rã, ruge o leão,

O gato mia, uiva o lobo

Também uiva e ladra o cão.

Relincha o nobre cavalo,

Os elefantes dão urros,

A tímida ovelha bala,

Zurrar é próprio dos burros.

Regouga a sagaz raposa,

Brutinho muito matreiro;

Nos ramos cantam as aves,

Mas pia o mocho agoureiro.

Sabem as aves ligeiras

O canto seu variar:

Fazem gorjeios às vezes,

Às vezes põem-se a chilrar.

O pardal, daninho aos campos,

Não aprendeu a cantar;

Como os ratos e as doninhas

Apenas sabe chiar.

O negro corvo crocita,

Zune o mosquito enfadonho,

A serpente no deserto

Solta assobio medonho.

Chia a lebre, grasna o pato,

Ouvem-se os porcos grunhir,

Libando o suco das flores,

Costuma a abelha zumbir.

Bramam os tigres, as onças,

Pia, pia o pintainho,

Cucurica e canta o galo,

Late e gane o cachorrinho.

A vitelinha dá berros

O cordeirinho balidos,

O macaquinho dá guinchos,

A criancinha vagidos.

A fala foi dada ao homem,

Rei dos outros animais:

Nos versos lidos acima

Se encontra em pobre rima

As vozes dos principais.”

Muito obrigado pela sua atenção, caro leitor. Boa convalescença. Os meus colegas também me pedem para lhe agradecer, já que ficaram com a redacção do noticiário político, social e desportivo muito mais facilitada.

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