O último ioiô

Um dia fomos apenas um e agora já não somos e dentro de um dia partir outra vez e dizer adeus a tudo o que somos para dali a umas horas sermos algo completamente diferente, numa terra diferente com uma temperatura diferente e uma língua diferente

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Asa Rodger/Unsplash

O último ioiô, 200 quilómetros, 100 para lá, 100 para cá, oxalá o carro se aguente, e eu também, o carro tem-se portado bem, 700 quilómetros feitos até agora and counting, eu é que nem por isso.

O último ioiô, chegar e partir e em poucas horas, dizer olá e adeus a tudo o que sou ao ritmo das emoções, ao sabor das emoções, ondas sem fim a vagar, perdidas em vez de mim, e uma a uma viver os beijos da minha mãe, o riso da minha sobrinha, sempre a correr, sempre a correr, uma "belinha" da minha irmã, o último abraço da minha avó, até porque é sempre o último abraço da minha avó, as lágrimas a romper a barragem dos olhos e nem eu sei se não será esta a última vez quando a pessoa que agora lhe habita o corpo é cada vez menos a minha avó, numa verdadeira lição de vida e morte enquanto as memórias e as histórias da pessoa que um dia fomos atravessam, por livre iniciativa e vontade própria, o limiar da realidade imediatamente antes deste buraco negro, 12 mil milhões de sóis negros ainda há pouco no centro da galáxia e agora aqui tão perto, o event horizon, veja só, avó, o limiar, ou a melhor tradução que pude encontrar no Google, mas chamemos-lhe event horizon, o horizonte, o fim, porque afinal a Terra não é redonda e a vida também não, e portanto o horizonte onde finalmente acontece, o quê não sei, ainda não é chegada a minha vez e eu aqui no meio.

Mas continuemos, ainda é preciso ir a casa, ver a casa, não entrar na casa e trazer a casa numa fotografia de telemóvel para a qual nunca mais vou olhar, a cadela aos saltos, não sei se por saudade ou alegria, talvez os dois, saudade, alegria, histeria, e em poucos segundos dizer olá e adeus a tudo aquilo que um cão também é, e adeus e olá à praia que um dia fui, ao mar que um dia fui, ao sol que um dia fui, chegar e partir, de volta à estrada, mais 100 quilómetros, um grito preso na garganta, uma lágrima e um soluço também, chegar a tua casa, aos teus pais e ao teu irmão, tempo, tempo, tempo, tempo tão juntos, rir juntos, conversar, viver, tempo por que se lutou para podermos estar outra vez juntos, porque um dia fomos apenas um e agora já não somos e dentro de um dia partir outra vez e dizer adeus a tudo o que somos para dali a umas horas sermos algo completamente diferente, numa terra diferente com uma temperatura diferente e uma língua diferente e até à próxima, quem sabe qualquer dia, o avião, a demora, sempre a demora, voar e aterrar, ir para casa, chegar a casa, abrir a porta, subir as escadas, abrir a porta, chegar a casa.

O silêncio.

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