Porto da nossa infância

Agora que o Porto se enche de gente, turistas e classificações, perde-se, de facto, de nós, do colectivo inomeável

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Kitato/Instagram

Houve, por aí, um dia em que perdi o fio à minha alma, na meada do destino. Ia jurar que ela andava passeando pelo Porto ao som de Debussy, depois de ter descido o Douro a partir das páginas da Agustina. Mas se a alma anda lá por cima, não sei a quem o corpo se tem impingido nas agruras da capital. O cérebro, a obsessão, o próprio esqueleto ressabiado, anda, ali, pela Av. Roma, entre o Vá-Vá e o Sul-América, o segundo ainda vive na memória do 74, o prédio onde cresci, sim, o que agora tem o Burger King, e que, uma vez, teve um incêndio onde ia perdendo, de todo, a saudade.

Mas, dizia, que a alma anda por cima, testemunhando a memória do sul, e tanto a alma quanto o corpo se andam decompondo, transformando, buscando no lustre da infância. Há, claro, uma infância vivida. E uma outra, a imaginada, ressentida por se ver livre de si-mesma. Se Lisboa é a minha infância sofrida, o Porto é o próprio mito desfazendo-se no sonho. Hoje, à medida que a memória cansa e sufoca, o Porto salva e engrandece, e a Ribeira à noite promete, garante tornar-se a última imagem, aliás, a primeira de sempre, no intervalo entre o nada e a coisa, entre o sono e a nostalgia. Sim, o Porto apetece mais, ele fala mais fundo, na cave, no sótão, do mundo. Só o Porto possui esse ímpeto, de ser por todos os que se imiscuem fascinados, siderados, no entre-ser.

Mas a minha memória, apagando-se, sabe que não se trata só do Porto. É também a Tondela da matriarca onde andava caçando quartzos e descobrindo a astronomia. Ou Cinfães, aliás, um lugarejo na serra, onde a casa centenária da família do meu pai ameaça ruir - e eu ia jurar que aquilo não cai por nada deste mundo -, que é o sítio onde cheguei a andar pelas ruas de pedra com medo da noite. Não havia iluminação pública, e isto era nos anos 80. Mas tínhamos, claro, a luz dos pirilampos que se amontoavam nas paredes, e o som dos riachos que passavam nos beirais das ruas. Eu, menino da capital, sofri horrores naquelas colinas, bem como na casa centenária que coleccionava aranhas. O progresso trouxe a electricidade e o alcatrão. Para compensar, foram-se as pessoas. E, assim, ficando as ruínas, como a capela abandonada, permanece a memória daquele momento que não é pertença de alguém.

Agora que o Porto se enche de gente, turistas e classificações, perde-se, de facto, de nós, do colectivo inomeável. O Porto que lembrava era escuro e misterioso. Sempre que lá volto, o sentimento rejubila, mas há algo que morre, e que é a imagem de um Porto irrecuperável. Sim, devemos sempre voltar ao sítio onde fomos felizes; não nos preocupemos, já não é o mesmo lugar. E eu, fui feliz no Porto, quiçá tivesse sido triste a experiência se, acaso, lá tivesse vivido. Viveu, por mim, o patriarca, e muitos antes dele, já perdidos para a reminiscência.

Diz-me uma amiga do Porto que aquilo já não é a mesma coisa. Transparecia uma namorada minha, que lá cresceu, o choque do que encontrou quando lá voltou. O Porto da celebração internacional é uma sombra do Porto de outros tempos. Também Lisboa se desagrega. Sempre fui a Lisboa dos cinemas. Onde estão esses cinemas agora? A Av. Roma dos cafés, e também dos cinemas, vem morrendo de há muito tempo para cá. E a primeira morte ocorreu quando lá deixei de viver. E, poderia eu, sentir fosse o que fosse sem que me tivesse feito "homem" bem longe, e tão perto mesmo assim, daquelas recordações?

E, regressando ao cinema, lembro dois filmes bem diferentes que espelham as minhas infâncias. "Vale Abraão" do mestre Oliveira é a minha identidade "pater". "Os Verdes Anos" é a minha identidade "mater". A minha alma ainda anda perdida pelo vale da "Bovarinha", o meu coração ainda cria a arritmia com a música do Carlos Paredes. Descobri a mesma música no filme do Oliveira sobre o Padre António Vieira, aquele onde regressamos ao paraíso com o toque da agressão da recordação mais nítida, que é o próprio esquecimento.

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