Carta ao Rui e ao Nuno

Poupem-me, por favor, e não me venham com essa treta de que todos temos de começar por baixo, porque se vocês não tiveram de começar por baixo, porque diabo temos todos nós de começar?

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JJ Thompson/Unsplash

Olá Rui e Nuno, está tudo bem? Daqui é o João, 38 anos de idade, licenciado em Ensino e emigrado há nove anos. Porquê? Porque, ao invés de me limitar a frequentar um curso, ou cinco, como tu, Nuno, ou fazer apenas quatro cadeiras, como tu, Rui, quis mesmo chegar ao fim e fazer não quatro mas 43 cadeiras ao longo de cinco anos. 43 cadeiras? Sim, 43, dez por ano em média, às vezes 11, 5 por semestre, às vezes seis, mais um ano de estágio.

Por querer ser alguém, ser professor, ter um emprego, algum dinheiro no banco e uma mão cheia de sonhos, daqueles sonhos normais dos quais não temos de acordar um dia às custas de uma bofetada, com uma casa, uma família, umas férias por ano, eu sei lá, coisas normais.

E por isso estudei, fui avaliado e passei a disciplinas tão diversas como Biologia Animal, Antropologia, Bioética, Bioquímica, Ecologia, entre outras e que vos são, estou certo, tão estranhas como a "conclusão" dos cursos que vos levaram aos cargos de adjunto e chefe de gabinete, cargos esses ainda presentes no portal das nomeações do Governo de Portugal sob o signo de um rendimento salarial de 3512 e 4159 euros mensais, respectivamente. Nada mau.

E talvez tenha sido esse o meu erro, o ter insistido em concluir um curso, ao invés de apenas por lá passear e passar, sem cunhas, conhecimentos, sem ser primo, filho ou enteado, sem ligações partidárias ou preferências políticas. Porque desde que acabei o curso nunca mais tive descanso, trabalho ou emprego que responda por tal nome. Não por não conhecer ninguém, conhecia, mas por não querer pedir, ou dever, favores. Por achar ser meu, por direito, um emprego e um futuro em conformidade com as minhas habilitações. Porque Portugal precisa de licenciados como de pão para a boca se de facto pretende desenvolver-se como país e construir uma sociedade digna, não só para os presentes, mas para as gerações futuras.

Por, no fim, ser ingénuo e acreditar tanto na certeza de um emprego como uma criança acredita no Pai Natal. E, como tal, poupem-me, por favor, e não me venham com essa treta de que todos temos de começar por baixo, porque se vocês não tiveram de começar por baixo, porque diabo temos todos nós de começar, continuar e acabar por baixo, viver e morrer por baixo ao mesmo tempo que é permitida a meia dúzia de eleitos, vocês incluídos, a prestação de falsas declarações aquando da nomeação para funções governativas, falsas declarações essas puníveis por lei com pena de prisão e/ou multa? Até quando a impunidade? Como é possível afirmar não saber ter uma licenciatura, numa tentativa patética de atirar areia para os olhos de quem os tem bem abertos há já tanto tempo? E, já agora, será pedir muito a devolução, com juros, dos rendimentos auferidos por vossas excelências ao longo do último ano?

Porque, Rui e Nuno, para além de nos tratarmos a todos pelo primeiro nome, como antigos colegas que fomos dos tempos da universidade, pouco mais há em comum. Eu, e 600.000 portugueses, emigrámos, para não ficarmos como o milhão de desempregados em Portugal. Vocês, ao contrário, não tiveram de emigrar, ou trabalhar. Não. Ao invés, tiveram sempre tudo de mão beijada, cargos sem entrevistas ou critérios de admissão, assim é a nomeação. E a parte gaga sempre foi esse vosso enfado, sinal de quem nunca soube dar valor a tudo quanto vos caiu, e cai, ainda hoje, no colo, para grande desespero dos vossos pais, esses sim bem colocados a nível partidário, sempre zelosos do vosso bem-estar. Porque, Rui e Nuno, desde os tempos da faculdade que vivemos em lados opostos da barricada, de um lado a burguesia, do outro todas as mãos e todos os braços sem descanso à espera destas cabeças numa bandeja. Duas já cá cantam.

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