Por trás dos gritos de Trump: a fractura primária nos EUA

Depois das alterações que estão a acontecer na Europa, 2016 pode ser o ano do início de uma reconfiguração política nos Estados Unidos — e uma vez mais com o trabalho no centro

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Sam Mircovich/Reuters

Nunca umas primárias americanas tiveram tanto impacto como as de 2016. As contradições no país capitalista mais avançado do mundo são hoje mais difíceis de esconder e, às vezes, não é nos gritos histriónicos e racistas de Donald Trump que se escondem as maiores surpresas. Pela primeira vez em muitas décadas, de entre os três candidatos mais visíveis na campanha — Donald Trump, Bernie Sanders e Hillary Clinton —, apenas a última defende o liberalismo económico que tem sido a política externa agressiva que os Estados Unidos impuseram ao mundo.

O mundo perde-se numa condenação mais do que justa das declarações incendiárias do multimilionário Donald Trump: “Nós vamos construir uma muralha na fronteira Sul dos Estados Unidos, e o México é que vai pagar”, “Vamos banir todos os muçulmanos de entrar nos Estados Unidos”, “Vamos extraditar os [11 milhões] de imigrantes ilegais”, “Vamos matar as famílias dos terroristas”. Embora o apelo ao ódio feito por Donald Trump tenha tracção junto de algum eleitorado republicano, o magnata não é de todo consensual dentro da cúpula do partido. E não o é principalmente pelo que diz em matéria económica: é da boca de Trump que têm saído os maiores ataques à globalização e aos tratados de comércio livre que foram promovidos pelos governos dos Estados Unidos desde há 30 anos.

É aqui que Donald Trump encontrou a sua zona de conforto: entre os milhões de trabalhadores brancos e pobres dos Estados Unidos que viram com o avanço da globalização a precarização das suas condições sociais e económicas, com a deslocalização e o "outsourcing" do trabalho, principalmente tecnológico, para a Ásia. Trump destaca-se entre os candidatos republicanos por ser o mais conservador: socialmente e economicamente. Os paralelos com a ascensão de Hitler na Alemanha encontram força também aqui: num programa político de divisão da sociedade, proteccionismo económico exclusivo para os caucasianos e racismo institucional.

Bernie Sanders é o candidato que materializa as reivindicações dos movimentos sociais progressistas mais proeminentes dos últimos anos no país: Occupy Wall Street e Black Lives Matter. A oposição de Bernie Sanders ao neoliberalismo americano vai pelo caminho contrário ao de Trump: aos invés da segregação e divisão, Sanders incorpora o universalismo das propostas para toda a sociedade, como a subida do salário mínimo dos actuais sete dólares para 15 dólares, com a proposta da gratuitidade total do Ensino e da Saúde. Não fora Trump, e Bernie Sanders seria o papão destas eleições, pois apresenta-se como “socialista” e defende um modelo de social-democracia nórdica como exemplo para a sua governação, colocando em causa o poder desmesurada da indústria financeira.

Fascismo dos anos 30

Estas propostas, em conjunto com o ataque ao racismo institucional, em particular à violência policial sobre negros nos Estados Unidos, e a necessidade de integrar os imigrantes na sociedade através de um estado social a construir, são centrais na capacidade de atracção que Sanders tem tido para milhões de pessoas, em particular os jovens precários que foram a base do Occupy e do Black Lives Matter. A justiça económica defendida, principalmente pelo ataque ao poder financeiro de Wall Street, marca outra diferença profunda entre Sanders e Trump, que é um representante inequívoco dos “1%”.

Entre os dois candidatos está Hillary Clinton, a mulher que representa na perfeição o "status quo": ex-primeira dama, ex-senadora, ex-secretária de estado, está numa posição de poder desde os anos 90 e apoiou todas as propostas de liberalização comercial e laboral, as intervenções externas violentas (tanto Sanders como Trump atacam as aventuras militares imperiais no Iraque e Afeganistão), de institucionalização do racismo (como as penas de prisão obrigatórias para crimes menores) e a conivência permanente com a finança e a banca. Apesar disso, ou exactamente por causa disso, é Hillary Clinton a mais que provável futura presidente dos Estados Unidos.

Qualquer que seja o desfecho, assistimos à criação de uma grande brecha na sociedade americana, fruto da globalização e da precariedade. Se é provável que o centrão, representado por Hillary Clinton nestas eleições, saia vencedor nestas eleições, o surgimento de importantes movimentos políticos, já materializados até dentro dos dois principais partidos, tanto à esquerda como à extrema-direita, indica um futuro difícil para o liberalismo económico e a flexibilização do trabalho em convivência com a democracia: as pessoas estão disponíveis para procurar alternativas políticas à degradação permanente da sua vida individual e colectiva.

Se Donald Trump não fosse um racista caminhando a passos largos para uma fotocópia do fascismo dos anos 30 na Europa, seria um adversário praticamente intransponível para a cara da velha política que é Hillary Clinton. Depois das alterações que estão a acontecer na Europa, 2016 pode ser o ano do início de uma reconfiguração política nos Estados Unidos — e uma vez mais com o trabalho no centro.

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