Roubaram-me a infância!

O não ter tempo para estudar, o ter esse tempo de trabalho marcado pelas exigências exteriores, despoja o aluno das oportunidades de aprender essas competências e, mais ainda, de aprender a forma como essas competências podem ser por si apropriadas

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Roubaram-me a infância! Imagino este dito num adolescente ou jovem adulto. E imagino-o como uma acusação que os mais novos poderão fazer à geração de que faço parte ou, de forma mais abrangente, aos educadores e decisores nas áreas da educação e da saúde no nosso país.

A introdução de exames nacionais e de "rankings" de qualidade na escola criou uma pressão em termos de redução dos objectivos de ensino aos da "performance" na classificação nos exames, o que relega para segundo plano muitas outras dimensões importantes do acto de ensinar.

Não quero com isto dizer que estou contra a existência de exames nacionais ou que os professores não se interessam pelas outras dimensões do acto de ensinar. Pelo contrário. No entanto, a pressão dos "rankings" e da "performance" têm modificado o ambiente escolar de forma bastante sensível.

A extensão dos programas e a obrigação de os cumprir acabam por acelerar a forma como os conteúdos são ensinados. A obrigação da abordagem de todo o programa obriga a que muitos pais e encarregados de educação sejam chamados a colmatar essas lacunas.

Existem também as escolas que são excluídas do sistema, em zonas periféricas, desfavorecidas em termos sócio-económicos, em que os graus de exigência são muito mais baixos. Assim, uma aluna que seja aplicada e tenha boas notas neste género de escolas pode sofrer depois uma grande decepção. Ao ir para o 10.º ano e entrar numa escola com outro grau de exigência acaba por se descobrir como uma aluna de segunda, sem competências nem conhecimentos suficientes para acompanhar o normal desenvolvimento dos trabalhos.

Quero com isto evidenciar movimentos de exclusão e intolerância que um sistema educativo excessivamente centrado na "performance" acaba por criar. A aplicação de critérios quantitativos à esfera educativa pode ajudar a configurar boas práticas mas, ao não estabelecer limites, pode também transformar essas boas práticas em comportamentos ocos, em más práticas. Por outras palavras e socorrendo-nos de um conceito clássico: é necessário procurar em tudo a justa medida.

Um outro exemplo concreto do que se disse passa pelo excessivo ênfase nos trabalhos de casa. Esta preocupação pode negar momentos de lazer e de não fazer nada (o que implica uma aprendizagem do estar sozinho e de se descobrir a si mesmo no convívio com os outros) o que só por si constitui uma tarefa desenvolvimental.

Mas o excesso de trabalho de casa pode apresentar outros componentes sobre os quais importa reflectir (ou, se quiserem, a obsessão em lutar contra o tempo livre que se consubstancia, por exemplo, nas aulas de substituição). Um dos quais tem que ver com competências de estudo, ou seja, saber estudar. Ora, o não ter tempo para estudar, o ter esse tempo de trabalho marcado pelas exigências exteriores, despoja o aluno das oportunidades de aprender essas competências e, mais ainda, aprender a forma como essas competências podem ser por si apropriadas.

A "performance" acaba assim por implicar uma relação específica com o tempo e o saber. Muitos alunos ficam, pois, despojados de espaço mental para admirar, pensar e gostar das matérias e conteúdos com os quais se envolvem. Ou, se quiserem: para criar relações afectivas com os saberes com os quais se confrontam. Ficam, pelo contrário, remetidos à posição de replicação mecanizada de conteúdos — o que pode ser sobretudo danoso em temas relacionados com as humanidades.

Claro que podem criticar este texto por demasiado generalista ou impreciso. Suporto-me na minha experiência enquanto psicólogo, pelo número crescente de crianças e adolescentes que surgem com sintomas relacionados com a ansiedade: bloqueio nos testes, descompensação, entre outros.

Termino então com a ideia de currículo oculto. O conceito tem que ver os conteúdos que são ensinados na escola para além dos tradicionais em sala de aula. Por exemplo: podemos tentar promover uma alimentação saudável em contexto de sala para depois disponibilizarmos máquinas de venda automática em que se pode adquirir chocolates e outros tipos de guloseimas. Aplicando ao nosso tema: na sala diz-se que é preciso saber estudar e interessar-se pela matéria ao mesmo tempo que inviabilizamos existência de espaço mental para que esse interesse se possa realmente efectivar.

O que estamos realmente a ensinar? 

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