Da arte de ficar rico

1% da população mundial dona de mais de 48% da riqueza mundial, isto só pode acabar bem!

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Tiago Matos Silva

Fome, fome, fome, sempre mais fome de mais: gulosa, sôfrega, faminta, famélica, esfaimada, lasciva, gananciosa, avara, mesquinha, insaciável, cúpida, voraz, devorante, ninfomaníaca, gananciosa, infartável, insaturável.

“Maldita fome de ouro” chamava-lhe o tio Virgílio na "Eneida" (“a que não obrigas os corações humanos?”). Nunca lhes chega: comer todos os dias e não passar frio é adquirido; acesso à saúde, à informação e ao conhecimento é básico; ter mais espaço para viver e um carro que denuncie a curteza fálica quase obrigatório; férias longe e uma segunda casa à beira mar uma rara espécie de necessidade; dois ou três (ou quatro ou cinco) vícios de luxo só para se mostrar que podemos ainda é pouco; tudo abaixo do anterior e somos poucochinho, deficitários, uns “losers”.

E alegremente nos tornamos no homem lobo do homem, damos palmadinhas nas costas do maior jacaré da sala (invejosos da “mais-valia” do eclipse de alma e dum estômago capaz de digerir ossos e dentes e bebés de colo e sonhos e tudo), usamos “tubarão” como elogio (um bicho de olhos opacos, sem cérebro e incapaz de hesitar em devorar todo o ecossistema à volta) e rezamos para que a próxima geração familiar produza canalhas mais eficazes do que até aqui.

Até à tristeza dos bem-vestidos cadáveres ambulantes deambulantes de conselho de administração em conselho de administração: jaguares a vomitar grisalhos vestidos em Savile Row, gravatas Zegna e botões de punho da Tifanny’s, genealogias que nunca mais acabam (o dinheiro chama sobrinhos como a merda chama moscas), secretárias, assistentes, "chauffeurs", consultores, mordomos, jardineiros, criados de quarto, decoradores, coleções de arte escolhidas por alguém que estudou para isso, amantes com idade para serem netas deles, números de secretas contas na Suíça, políticos sorridentes, académicos compreensivos, jornalistas untuosos, chusmas de advogados como nuvens de melgas em noite de estio.

E aquelas mãos pálidas e descarnadas a segurar os papelinhos que, apesar de não poderem ser levados para a cova, provam que tudo valeu a pena, vidas e vidas e mais vidas oferecidas em holocausto sacrificial no altar do único deus que nos resta: as dos famélicos do “não chega para todos”, as dos desgraçados de baixo, das vítimas da eficácia, dos desempregados e dos mutilados dos “cortes racionais”, dos precários e dos criminosos obrigados da miséria, dos filhos tolos e cúpidos do bem-estar, e finalmente das vacas nutridas e exemplares do sistema, o “empreendedor” ele mesmo... a morrer sozinho e cheio de medo de perder aquilo que já não lhe serve para nada, como tios Patinhas a tentarem nadar em piscinas de moedas. Foda-se que o capitalismo é mesmo lindo!

E a trança de desgraças a que chamamos modo de produção continuamente a engrossar, a semear destruição em casa e à distância, a esfomear pequenos para engordar grandes, e dizem que é Darwin aplicado e a lei da selva e o lado animal: mentira atrás de mentira, somos o único bicho que continua a mastigar depois de saciado, o único que se atulha até ao suicídio.

1% da população mundial dona de mais de 48% da riqueza mundial (dados do Crédit Suisse, esses perigosos anarquistas, de Outubro do ano passado), isto só pode acabar bem! Os gregos antigos, que tinham palavras para tudo, chamavam-lhe Crematística (Aristóteles na “Política” I.9): a arte de ficar rico... muito acima de nós, os abutres sorriem escarninhos, há sempre carniça nova à mesa, esperem-lhe pela volta, diria a minha avó.

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