E no ventre das canções, sabedoria

Valham-nos os sem-medo, os curiosos, os questionadores, os cientistas, os escarafunchadores, os artistas, os corajosos, os poetas, os que se riem com os dentes todos dos tigres de papel no poder. Força aí Luaty, se nós não chegarmos, a história te absolverá. Preso por ler um livro, nunca vi crime tão bonito!

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Hesito uma décima mas mostro a palma ao senhor, é verdade que cheguei antes mas ele é muito mais velho do que eu; tem um tipo fino o gajo, espreitou discretamente o livro que eu lia na paragem e agora recusa a gentileza com os olhos, eu insisto (os estudantes do ISCTE atrás de nós impacientam-se com as nossas portuguesisses), ele cede e sobe ao 754, eu sigo-o: a gentileza exerce-se ou perde-se, ensinamos-lhes.

O tempo está farrusco mas ainda está quente, é tempo de testes e entrega de trabalhos lá na escola, os estudantes (termo usado em sentido alargado) esbulham-se em atenções: os de 10 sorriem-nos, os de 12 oferecem-nos lume, os de 14 cigarros, os de 16 perguntam-nos pela saúdinha da avó: chamava-lhes cabotinos mas deixava-os à rasca, o desgosto da professora de Português que o diga. Há um que me vem dizer que o “Matrix” é melhor que o “Padrinho” e eu respondo-lhe que ele não merece ter olhos nem orelhas nem boca para dizer heresias daquelas (eu sou do tipo suave, mais 30 ou 40 anos e chego ao carinho do velhote do autocarro); mas registo a coragem da criatura. Leio a Bíblia: “o temor do Senhor é o princípio da sabedoria” (Salmos 111, 10) bela burricada! Valham-nos os sem-medo, os curiosos, os questionadores, os cientistas, os escarafunchadores, os artistas, os corajosos, os poetas, os que se riem com os dentes todos dos tigres de papel no poder. Força aí Luaty, se nós não chegarmos, a história te absolverá. Preso por ler um livro, nunca vi crime tão bonito!

O governo toma posse, à esquerda escarninha-se, à direita desesperam-se, o Aníbal está claramente fora, os comentadores comentam e comentam e comentam e comentam. A carne vermelha e o fiambre são mortíferos... claro que são! Estava-se mesmo a ver. O tabaco já sabíamos de duas ou três gerações de insuficientes respiratórios, o copo é o que sabemos em cirroses e mulheres espancadas, a mioleira enche-nos de tremores, o frango de gripe, a sardinha de mercúrio, o bacalhau de sentimento de culpa (pela extinção da espécie), o cavalo verte-nos em farrapos, a branca em maníacos paranóicos, os comprimidos em sorridentes zombies esvaziados de sensações... nem uma ganza se pode fumar numa esquina do Cais de Sodré sem que não apareçam três senhores agentes de maviosos olhares paternais a dizer que não com a cabeça. A alface é transgénica, o tomate foi congelado e descongelado três vezes antes de aterrar de Israel, a cebola é hidropónica e nunca viu terra, o azeite é mais óleo que azeite e o vinagre é martelado, olho desconfiado para a salada... e com razão: ela quer matar-me!

Os namorados entram no autocarro já agarrados pela boca (a boca, singular, uma só naquele momento), passam os passes sabe Afrodite como e escorregam corredor abaixo sempre num beijo só, a tropeçar nos produtivos de fim de tarde e nas velhas beatonas de ar chocado, nas velhas já meio-mortas por dentro, nas velhas que confundem o sublime com o obsceno. Eu devolvo os olhos ao meu livro, fruo o calor do abraço alheio sem o ver, recolhido no nosso pudor bem-educadinho, que sabe que está lá mas finge (para o bem e para o mal) que não se apercebe. E assim a nossa maior virtude se revela como o nosso pior defeito... Este país é um colosso, já cantava a tia Ivone.

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