Eu, embaixadora, me confesso

Haveremos de amar os países onde estamos por nos dar o que Portugal talvez nunca nos ofereça, mas haveremos de ter sempre o coração no local onde partimos, porque o princípio da história e aquilo que nos transforma no prólogo da vida marca-nos a ferro e fogo o coração

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Rafael Marchante/Reuters

Entrei uma noite num táxi e nesta cidade de chegadas e tantas partidas a pergunta obrigatória acabou por chegar: “De onde és?”. Portugal saiu-me da boca pela milésima vez ao longo destes últimos quatro meses. E com a palavra Portugal vi, através do retrovisor, nascer um sorriso no rosto do taxista. “Conheço uma portuguesa. Mariza”, disse vaidoso, nesse português de sotaque americano. Precisei de alguns segundos para perceber que quando ele dizia Mariza dizia Fado. Havia-a visto num concerto aqui em Washington há meses e desde então o Fado acompanhava-o. Tive, pois, de lhe perguntar se tinha percebido as letras. Foi então que não me olhou pelo retrovisor. Virou a cabeça na minha direcção e disse-me de sorriso aberto que não havia entendido nenhuma das palavras, mas que percebera todas as músicas através do que sentiu.

Disseram-me antes de partir que deveria ser uma embaixadora de Portugal. Nós que deixamos o nosso país teríamos a obrigação de falar das nossas origens, de informar, de promover, de cativar. Não é uma obrigação, digo-lhes. É um prazer. Nós que partimos dizemos Portugal com orgulho, porque quando dizemos Portugal sentimos os cheiros, surgem-nos na retina as gentes, as paisagens, a comida, o mar. E portanto dizer Portugal é sentir, é estar lá não estando. Dizemos Portugal e as pessoas percebem que há algo de especial. Dizemos Portugal e dificilmente sabem onde é Portugal, como se vive em Portugal, o que tem de característico Portugal, mas quando sabem gosta-lhes a ideia de Portugal. Inesperadamente em alguns casos dizemos Portugal e do outro lado dizem-nos Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, falam-nos da ajuda militar prestada. São os taxistas (africanos), sempre os taxistas ou os viajados que lhe conhecem a narrativa. Por vezes não é preciso explicar onde fica no mapa. Reconhecem-nos a História e a nossa pequenez geográfica parece-nos de repente gigante.

A verdade é que talvez nunca consiga colocar no patamar verbal coisas que apenas se sentem. Portugal será sempre para nós saudade, essa palavra sem tradução tão difícil de explicar na língua estrangeira. Será o Fado, será a gastronomia, serão as montanhas, o mar, as gentes. Não nos tomo portanto como embaixadores. Tomo-nos simplesmente como portugueses, onde quer que estejamos, diferentes na essência, no contacto, na adaptação.

Haveremos de amar os países onde estamos por nos dar o que Portugal talvez nunca nos ofereça, mas haveremos de ter sempre o coração no local onde partimos, porque o princípio da história e aquilo que nos transforma no prólogo da vida marca-nos a ferro e fogo o coração. E o coração pertence às paixões. A nossa, a dos que partiram, está a alguns, a muitos ou a milhares de quilómetros de distância. É Portugal, esse país à beira mar plantado, essa palavra que nunca se gastará na boca.

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