Qual o valor? Posso pagar com vida?

Quando trabalhamos estamos a trocar o nosso limitado tempo de vida por dinheiro. E quando compramos algo com esse dinheiro é o mesmo que trocar coisas, bens e serviços por parte da nossa própria vida

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Kitato/Instagram

Quando comecei a trabalhar nunca pensei muito no salário, confesso... Comecei com um estágio profissional que era tabelado para os recém-licenciados. Depois fui fazendo o meu percurso no setor da construção, tão próprio a flexibilidades laborais mas onde ainda se ganhava algum dinheiro - hoje já nem isso, ficou só a flexibilidade.

Um dia decidi concorrer a uma vaga num instituto público. Ganhei o concurso e passei a ser um contratado da função pública – que é diferente de funcionário público. Decidi passar para o setor público porque queria experimentar como seria trabalhar em Portugal no serviço público. Havia certas vantagens e desvantagens, como tudo na vida.

De súbito cai uma crise dentro da nossa já habitual nacional crise. Com cortes e mais cortes passei a ganhar quase o mesmo que me tinham dito ser justo receber quando era estagiário e pouco sabia da realidade do trabalho. Foi ai que me forçaram a pensar no valor/hora que ganhava, mais concretamente quando aumentaram o horário de trabalho “teórico” de 35 para 40 horas. Quiseram convencer-me que uma hora do meu trabalho agora valia menos. Ou seja: uma hora da minha vida valia menos, logo era toda a minha vida que menos valia. Isso fez-me pensar no sentido da vida, agora menos valiosa.

Quando trabalhamos estamos a trocar o nosso limitado tempo de vida por dinheiro. E quando compramos algo com esse dinheiro é o mesmo que trocar coisas, bens e serviços por parte da nossa própria vida. Vamos vendendo, parcelarmente e às prestações, o que nos é mais preciso, por vezes por tão pouco ou nada. Até que ponto ficamos reféns do consumo, hipotecando o que de melhor temos? E até que ponto podemos ter uma vida cheia mas que nada vale porque ninguém quer comprar o nosso tempo?

Em tempos de crise a vida humana vale menos. Em tempos de crise há tempo precioso de vida que não é valorizado porque ninguém precisa dele. Se dinheiro é “valor” quantificável, apesar de abstrato, será que este sistema de trabalho que transforma a vida em capital nos valoriza enquanto pessoas de facto? Consta que ainda existem nos confins do mundo algumas tribos isoladas a viver numa espécie de paraíso terreno, necessitando apenas de “trabalhar” 3 horas diárias para garantirem a sua plena subsistência e felicidade. E nós, ainda que trabalhando e sendo valorizados pelo que trabalhamos, seremos felizes? Que dirão então aqueles que, mesmo querendo, não conseguem qualquer valor por uma hora da sua vida? Responderão talvez - com a sua razão - aos que têm emprego e se queixam: muita sorte tens tu!, pois a tua vida ainda vale qualquer coisa! Pensando (ou não) nisso os empregados lá vão estourando o parco valor das suas vidas em algumas coisas desnecessárias. Mas pelo menos esses têm opção.

Vamos vendendo a vida às necessidades básicas e a outras inventadas para nos aprisionar. Antigamente quando se vendia a alma ao diabo, tal como Fausto, a coisa era mais original e a troca muito sedutora. Agora a vida é vendida a baixo preço quase sempre por banalidades sem qualquer interesse de registo. Já nem o Diabo nos tenta, nem os Deuses nos salvam. Esperem lá que afinal é Natal e é tempo de exceções, e de irmos felizes com a vida nos bolsos rumando às Mecas do consumo. Ou então simplesmente valorizem-se e valorizem os outros, mesmo que mais ninguém o faça, pois o valor é subjetivo.

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