António Costa quer reciclar a social-democracia

Na moção, o líder do PS não se desvia um milímetro do ideário social-democrata e dá prioridade à redistribuição de riqueza e de combate a todas as exclusões que é característico desta ideologia.

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Política de alianças não é referida no texto LUSA/MÁRIO CRUZ
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Na sua moção, Costa não pede maioria absoluta LUSA/TIAGO PETINGA
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António Costa foi ao Algarve apresentar a sua moção LUSA/TIAGO PETINGA

A moção de estratégia global de António Costa ao 22º Congresso do PS é do ponto de vista teórico e doutrinário um documento que reafirma a social-democracia, logo, filia-se claramente à esquerda. Costa consegue mesmo o “milagre” de, sem rasgar as vestes do velho PS, puxar o partido para os novos tempos, para o mundo de hoje, com os seus novos desafios, problemas e obstáculos.

Digo do ponto de vista teórico e doutrinário, porque se trata de uma moção de estratégia e não de um programa eleitoral. Como documento político enquadrador da acção governativa que o líder do PS quer levar à prática na próxima legislatura, a moção só pode afirmar princípios doutrinários e intenções genéricas. Caberá, mais à frente, na convenção já marcada para Junho, os socialistas transformarem o conteúdo da moção em propostas políticas concretas. Só então se poderá aferir de onde, como e para onde António Costa quer levar o PS.

Estruturada em quatro eixos que assume como enquadradores e determinantes das reflexões sobre o futuro, a moção do secretário-geral elege à cabeça as alterações climáticas, tema de que decorrem os eixos seguintes: demografia, sociedade digital e desigualdades. Sublinhe-se: este puxar do pensamento político em Portugal para o mundo de hoje não é inédito.

Estes temas estiveram presentes na moção de estratégia de Rui Rio e os dois primeiros nos seus discursos no Congresso do PSD. E os quatro foram também levantados no discurso de encerramento do Congresso do CDS, proferido por Assunção Cristas, e integram há meses o discurso do vice-presidente centrista Adolfo Mesquita Nunes. Mais perto das legislativas, perante os programas de cada um destes partidos, se poderá então perceber as soluções concretas que apontam e as diferenças entre esquerda e direita.

À esquerda no PS

A leitura da moção permite concluir que António Costa não se desvia um milímetro do ideário social-democrata e dá prioridade à redistribuição de riqueza e ao combate a todas as exclusões que é característico desta ideologia. É mesmo possível concluir que António Costa tem uma leitura social-democrática à esquerda, não radical, mas mais à esquerda do que anteriores líderes do PS, aproximando-se, contudo, de António Guterres no que este quando primeiro-ministro fez no plano da protecção social dos mais desfavorecidos, através do então ministro do Trabalho e da Solidariedade, Eduardo Ferro Rodrigues.

É significativa a referência ao Complemento Solidário para Idosos e o compromisso de o PS “reavaliar os instrumentos de mínimos sociais de apoio à população em idade activa para melhor conciliar a protecção social com os estímulos à integração no mercado de trabalho”. Como é um sinal claro a promessa de continuar “uma política de actualização sustentada do salário mínimo nacional”.

Igualmente reveladoras de uma visão social-democrata de esquerda são as ideias contidas na moção de António Costa sobre justiça fiscal, que denotam uma aposta cristalina na redistribuição de riqueza. Não só a promessa de realizar “políticas capazes de garantir uma justa taxação dos ganhos de capital, que surgem muitas vezes como expediente para evitar a tributação de rendimentos em sede de IRS”, mas também a ideia de que “o PS deve estudar uma ferramenta eficaz para ter capacidade de aplicar uma medida de impacto nas desigualdades dos diferentes instrumentos estratégicos das políticas públicas e em cada Orçamento do Estado, assim como alterações na fiscalidade”.

A forma como a economia digital está a transformar o emprego é outra questão em que são visíveis preocupações sociais-democratas de esquerda, na moção de António Costa. Ainda que aqui não surjam quaisquer propostas concretas, é assumida a preocupação com “os desenvolvimentos rápidos da inteligência artificial e da robotização”, com os “riscos de desemprego tecnológico”, o “desaparecimento de algumas profissões”, a “transformação profunda dos empregos”, a resposta à exigência de qualificação da população activa.

É afirmada a promessa de que “o Estado deve preparar respostas para os mais vulneráveis aos rápidos desenvolvimentos tecnológicos e ponderar mecanismos que assegurem o acesso de todos ao mercado de trabalho”, de modo a prevenir “a emergência de novas modalidades atípicas de emprego”, bem como estar atento às “relações laborais” e à “protecção social” para “não gerar novas formas de exclusão social”. E garante mesmo que o PS irá “trabalhar no sentido de definir um quadro legal sobre esta realidade que impeça que ela se transforme num segmento invisível da população activa”.

Abrir à imigração

Num plano diferente, o da demografia, surgem também na moção apostas que se inscrevem no pensamento social-democrata de esquerda. Pela frontalidade com que assume que “por mais que se promova a natalidade, tal não bastará para repor o nosso equilíbrio populacional, pelo que o saldo migratório é também importante no médio prazo”, mas também pela clareza com que afirma uma atitude política não securitária nem xenófoba, ao advertir que “a importância desta prioridade à imigração implica distinguir e tratar de forma distinta a gestão administrativa da imigração daquelas que são as funções no quadro da segurança interna”. Prometendo “retomar a afirmação e concretização do princípio geral da igualdade de direitos entre nacionais e estrangeiros imigrados em Portugal”.

É evidente que há diversos de assuntos em que a moção de António Costa é suficientemente teórica, apenas os elegendo como problemas prioritários, e sobre os quais não é possível nesta fase afirmar se a abordagem que faz e as soluções que apresentará são mais moderadas, mais à esquerda ou mais à direita. E até a defesa clara de temas que hoje são transversais aos partidos democráticos como a igualdade de género.

O futuro programa eleitoral definirá se serão ao centro ou à esquerda as propostas concretas que António Costa apresentará no programa eleitoral para questões levantadas na moção de estratégia como a aposta nas energias renováveis, na mobilidade, na gestão da água (aqui avança a ideia de reutilização e o projecto de um Programa Nacional de Regadio), na floresta, na conciliação entre trabalho e vida familiar, a preparação do Serviço Nacional de Saúde para o envelhecimento da população, a diversificação do financiamento da Segurança Social, a promessa de “melhorar o sucesso escolar e reduzir o abandono escolar”.

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