“A Sombra de um Homem” (“The Browning Version”), de Anthony Asquith (1951)

A obra que hoje vai merecer o meu olhar chama-se, em Portugal, “A Sombra de um Homem”, o que é, à sua maneira, uma tentativa de resumo do tema, ou seja, um homem que se tornou numa sombra do que, em tempos, foi

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Tal como temos visto em crónicas anteriores, são múltiplas as razões para se classificar um filme como notável, dependendo da natureza do que ele nos dá, seja mais da esfera da razão, seja mais da do coração. E, como sabemos, a nossa ligação com esse objecto de arte pode justificar-se tanto pela participação de um actor como pelo estilo identificável do realizador, pelo tema abordado, por um tipo de ambiente que nos agrada, pela qualidade dos diálogos, pelas surpresas do argumento, pela decoração de certos espaços interiores, até por uma fisionomia ou um gesto que sejam, para cada um de nós, de especial expressividade. Se tivermos sorte, tudo isto se apresentará, reunido, num mesmo filme. E, fazendo sempre a ressalva da individualidade de quem aprecia, julgo ser provável que em muitos dos títulos já abordados aqui e cujos textos podem ser consultados um bom número de leitores possa encontrar ou reencontrar desses exemplos.

A obra que hoje vai merecer o meu olhar para que, eventualmente, mereça também o seu, chama-se, em Portugal, “A Sombra de um Homem”, o que é, à sua maneira, uma tentativa de resumo do tema, ou seja, um homem que se tornou numa sombra do que, em tempos, foi. Já o título original, como é costume, aponta numa direcção bem diversa: “The Browning Version”, ou seja, “A Versão de Browning”. Descodifiquemos a informação: a versão de Browning refere-se a uma tradução da peça de teatro “Agamémnon”, da autoria de Ésquilo, um grego que nasceu por volta de 525 antes de Cristo, feita pelo poeta Robert Browning (1812-1889). Mas – calma! – apesar de a peça ser citada ao longo desta história, a ponto de ser classificada pelo protagonista como, “talvez, a maior peça alguma vez escrita” (e não se estava a referir à duração...), apesar de se atirarem para o ar citações em grego, não é necessário, para saborear o que há para saborear, saber grego, gostar de peças de teatro do tempo da outra crise ou ir a alfarrabistas. Não, o essencial é o que há de mais moderno: um professor universitário que ganha pouco, que é ridicularizado pelos seu alunos, excepto por um, que é ridicularizado pela sua esposa, que é tratado com indiferença pela instituição onde ministra e que se foi remetendo a um estado semivegetativo (ele fala, ele move-se) sustentado, em grande parte, pela disciplina férrea (pronto, esta parte é pre-histórica, concedo) que mantém nas aulas e que o mantém nesse papel.

O papel do professor, que se chama Crocker-Harris, mas a quem os alunos chamam “Crock” quando estão bem-dispostos e “o Himmler da lower-fifth” (turma de alunos de 14-15 anos) quando não estão, é brilhantemente interpretado por Michael Redgrave. De facto, tão brilhantemente que consegue definir uma personalidade antes mesmo de dizer uma palavra e, depois, com o realce da forma como as diz, arranjando forma de nos fazer descobrir, pela mão do aluno que quis ir mais longe, uma humanidade que diríamos não existir. Mas é claro que este desempenho memorável não poderia ter existido sem o argumento de Terence Rattigan, a direcção do realizador Anthony Asquith (filho do primeiro-ministro inglês Herbert H. Asquith), de quem haveremos de voltar a falar, assim o coração e o Orçamento do Estado para 2013 o permitam, e os actores Jean Kent, no papel de esposa de Crocker-Harris, Nigel Patrick, o amante dela, Wilfred Hyde White, o reitor, e Brian Smith, o aluno simpático que ao saber que o professor tinha tentado fazer a sua própria tradução de “Agamémnon”, lhe oferece um exemplar usado da tal versão de Robert Browning .

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