“O Crepúsculo dos Deuses” (“Sunset Boulevard”), de Billy Wilder (1950)

Há um corpo a boiar numa piscina (a dado passo, mostrado de forma inovadora), que nos conta a história

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Vamos repetir Billy Wilder. Não estando obrigados a um filme por realizador nem a qualquer sistema de quotas preconcebido, por nacionalidade, tema, ideologia, intenção comercial ou anticomercial, podemos prosseguir em liberdade na apresentação dos filmes que nos interessam, uma liberdade, mesmo assim, condicionada pelas limitações do organizador da lista, sejam de memória, de gosto, de compreensão ou de quantidade de obras vistas, entre as dezenas de milhares a que teoricamente poderíamos ter acesso.

Ora, na memória dessa amostra de cinema efectivamente vista persiste e persistirá “O Crepúsculo dos Deuses” como notavelmente representativo de um tipo de arte difícil de definir e fácil de ilustrar: a boa.

Evitamos assim o problema insolúvel de encontrar um padrão de qualidade universalmente aceite: abrimos em cada semana uma cortina e revelamos uma peça cuja arte fala por si própria, além-fronteiras de espaço e tempo, sem necessidade de defesa. Se nos conquista pelo fascínio, funciona. Comigo, funcionou.

Tal como as peças abordadas em anteriores crónicas — entre as quais está “Pagos a Dobrar” (“Double Indemnity”), do mesmo realizador — e nas que aí hão-de vir, queira Deus. Funcionou e continua a funcionar, sempre que o revejo (o filme), sempre que a sinto (a arte).

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Começa tudo com o argumento de Billy Wilder, Charles Brackett e D. M. Marshman (Óscares para os três) e confirma-se com a materialização do que lá escreveram: a interpretação dos diálogos, a expressividade, a gestualidade, a movimentação dos actores (nomeações de William Holden para o Óscar de melhor actor, de Gloria Swanson para o de melhor actriz e de Eric von Stroheim para o de melhor actor secundário), a direcção dos actores, os enquadramentos, os movimentos de câmara (nomeação de Billy Wilder para o Óscar de melhor realizador), a iluminação, a direcção de fotografia (nomeação de John F. Seitz para o Óscar respectivo), a pontuação da acção e o reforço da expressão dramática por música original (Óscar para Franz Waxman), os cenários como personagem, como extensões de personagens, como instauração de um ambiente-chave coerente (Óscares para a direcção artística de Hans Dreier e John Meehan e para a cenografia de Sam Comer e Ray Moyer), o ritmo dado pela montagem (nomeações para o Óscar de Doane Harrison e Arthur P. Schmidt).

É uma relação impressionante, mas mais ainda é o resultado de tudo isso combinado, de que podemos seleccionar algumas fracções ilustradoras. Há um argumentista com pouco sucesso (William Holden) que foge aos credores. Há uma propriedade simbólica de glórias passadas que abriga pessoas paradas no tempo. Há uma superestrela do cinema mudo delirante (Gloria Swanson) e o seu mordomo igualmente improvável (Eric von Stroheim), que lhe alimenta o ego e a protege da realidade, que é o único empregado da casa, que foi o seu primeiro realizador e o seu primeiro marido. Há um corpo a boiar numa piscina (a dado passo, mostrado de forma inovadora), que nos conta a história.

Mas o que fica é a solidão daquela actriz. O que fica é o rosto e as mãos de quem, por desespero, se agarra à imaginação da admiração colectiva para aliviar a dor de uma pequenez íntima que corrói. O que fica é a imensa tristeza de a ver convencida de que vai, de novo, ser dirigida por Cecil B. DeMille, quando é o mordomo-ex-realizador-ex-marido (interpretado por Eric von Stroheim, que a dirigiu na vida real) que finge sê-lo. “A senhora já foi uma grande actriz...”, dizem-lhe. E ela: “Eu sou uma grande actriz! Os filmes é que se tornaram pequenos!” Mas não este, não este...

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