“As Três Noites de Eva” (“The Lady Eve”), de Preston Sturges (1941)

Está assegurado um dos maiores prazeres desta longa-metragem: a colecção de citações

Cartaz The Lady Eve
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O presumível jovem herdeiro do império da cerveja Pike (Henry Fonda) regressa aos EUA após uma expedição ao Amazonas feita em nome da sua paixão pela ofiologia. Permitindo-se, por força da riqueza do pai, embarcar em pleno mar num navio que já tinha partido, causa sensação entre os passageiros, que assomam à coberta para o ver entrar. Acompanhando um movimento de câmara contínuo que, da direita para a esquerda, passa em revista os que se juntaram na amurada, ouvimos os seus comentários, entre os quais o de uma mãe a dizer à sua jovem filha que pode vestir uns calções, autorizando-a, assim, a usar essa arma na guerra que vai começar, a bordo, pela conquista daquele solteiro desejável.

Depois a câmara sobe e pára num homem idoso (James Coburn) e numa jovem de lenço branco no cabelo (Barbara Stanwick), pai e filha, entretidos noutro género de comentários, como se o estudioso de serpentes, que apenas vêem ao longe, se tivesse tornado na sua presa, imaginando-o propício a ser comodamente “aliviado” de parte relevante da sua propalada fortuna. E quando a jovem se queixa dos ossos do seu ofício, perguntando por que tem sempre de fazer o trabalho sujo quando há tantas velhotas ricas que podem ser levadas à certa, o pai responde: “Encontra-as, que eu levo!...” Sorrimos e pensamos: “Ah, já vimos tudo!...” Mas não: não é um par de vigaristas vulgares. Quando a filha se entusiasma (ah, a juventude!) e diz que gostaria de ver o pai a fazer o three-in-one a uma velhota, o pai dá-lhe uma reprimenda: “Don’t be vulgar, Jean. Let us be crooked, but never common”. Isto é, há que ter ética no trabalho: ser vigarista está bem, mas boçal, nunca. Outros tempos...

Os dados estão lançados. Apresentaram-nos a situação que serve de ponto de partida, construímos uma expectativa sobre o que se vai seguir, mas a arte dos que fizeram o filme leva-nos não só por caminhos que não antevimos, mas também por discursos e réplicas que hoje não se usam e que naquela época alguns sabiam usar como ninguém. É um traço comum às obras mais conhecidas de Preston Sturges, em que ele era simultaneamente realizador e argumentista. Foi assim em "Sullivan’s Travels", em "The Palm Beach Story", em "Hail the Conquering Hero", em "Christmas in July". Por isso, se a mestria do tradutor – que é posta constantemente à prova – permitir reconstituir o essencial da criatividade e expressividade das falas (com severos limites na legendagem de cadências orais demasiado rápidas), está assegurado um dos maiores prazeres desta longa-metragem: a colecção de citações.

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Os primeiros movimentos de câmara são reveladores DR

Por fim, é preciso relevar a direcção dos actores e o seu desempenho. Além dos mencionados Barbara Stanwick (Jean), Henry Fonda (Charles) e James Coburn (“Coronel” Harrington) temos também William Demarest, que aqui é o grosseiro, desconfiado e cómico Muggsy, guarda-costas e criado de Charles, mas que aparece nos oito filmes que Sturges realizou entre 1940 e 1944, Eugene Palette no papel do milionário pai de Charles (veja-se a cena em que ele tenta que lhe sirvam o pequeno-almoço) e Eric Blore como falso aristocrata inglês. Tudo isto é uma amostra do “estilo Preston Sturges”, abrindo o apetite cinematográfico para mais. Bom proveito!

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