Ensino superior privado: um cavalo de Tróia

A mercantilização do ensino em Ciências Farmacêuticas não só desnivela a formação, como cria falsas expectativas e desvaloriza a classe

ANA MARIA COELHO
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O final da década de 70 marcou uma mudança no ensino superior com o início da privatização e - consequente – mercantilização dos sistemas educativos até à actualidade, numa perspectiva neoliberal, seguindo orientações reformistas da OCDE e da UNESCO.

 

A intervenção estatal no ensino superior assentou na democratização do acesso. Com a crise económica posicionaram-se as forças de mercado com promessa do aumento de qualidade e capacidade formativa para o país, suprimindo a incapacidade do Estado, surgindo o sector privado de ensino no âmbito da procura, não satisfeita, no sector público de um ensino distintivo.

 

Qual será então o enquadramento deste ensino privado? A meu ver, só há três hipóteses:

- impossibilidade estatal a nível Orçamental;

- ensino superior privado distinto do público (melhores infraestruturas e maior qualidade do corpo docente);

- incidência sobre cursos de oferta pública reduzida.

 

Ora, também a meu ver nenhum destes motivos enquadra o ensino privado de Ciências Farmacêuticas em Portugal, o que me faz questionar a pertinência deste existir, senão vejamos: existem 9 instituições de ensino superior (IES) – Faculdades de Farmácia do Porto, Coimbra e Lisboa; ISCS - Norte; ISCS - Egas Moniz; Universidade Lusófona; Universidade da Beira Interior; Universidade Fernando Pessoa e Universidade do Algarve – a leccionar Ciências Farmacêuticas que, anualmente, equiparam a um idêntico grau centenas de novos profissionais.

 

Nenhuma das instituições de ensino privado superou a qualidade formativa da FFUP, FFUL e FFUC, nem dotou o curso de melhores infraestruturas e corpo docente, muito menos este representava um curso com oferta reduzida. Aliás, a nível do corpo docente várias são as instituições privadas que pagam a docentes do ensino público a peso de ouro – e que se deixam vender por múltiplos ímpares -, para credibilizarem um ensino que, em vários casos, ele próprio consegue descredibilizar a formação e desnivelar uma profissão nobre – e nem me atreverei a abordar a ramificação para o curso técnico de Farmácia –, suportada, também, pela segunda linha da docência do ensino estatal. E esta factura do peso de ouro é paga pelas exorbitantes propinas. Isto é equidade, dizer que há ensino – mesmo que de qualidade incerta em alguns casos - desde que haja dinheiro para o pagar? 

 

E não falo nisto para preservar os "numerus clausus" em função do mercado, porque se as universidades públicas podem formar, que formem então, mas que definam um critério: a qualidade. Mantendo o "ratio" de estudantes por docente e a avaliação contínua, rigorosa e especializada - os padrões de exigência de um ensino distintivo para a profissão farmacêutica - então não há razões para não existir formação, num verdadeiro combate à crise de identidade e valores, e aumentando os padrões do ensino discutindo a necessidade do suposto ensino "tapa-buracos". 

 

A mercantilização do ensino em Ciências Farmacêuticas não só desnivela a formação, como cria falsas expectativas e desvaloriza a classe. Tal como o cavalo de Tróia parecia muito bonito quando foi oferecido, o que é certo é que este conteúdo era expectável e traiçoeiro.

 

Resta-me partilhar convosco aquilo que neste momento me vai na mente: Quero trabalhar no meu país e ver um ensino superior valorizado e exigente, posso?

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