A “geringonça”, quanto maior está, mais fome tem

Há regras. Não são muitas, nem são novas mas constam das posições conjuntas que os partidos assinaram em 2015.

A palavra "geringonça" não me incomoda. Sei que há quem a desconsidere por entender que é limitadora, preconceituosa e até jocosa, mas eu acho que é um "conseguimento", como diria a ex-presidente da Assembleia da República Assunção Esteves. Ao longo dos anos - sim, já passaram anos - o termo perdeu a carga pejorativa e o pecado original que lhe estava associado foi ficando para trás. A "geringonça" já deu provas de funcionar. E é sobre isso que me debruçarei. Por que funciona a "geringonça"? E, claro, até quando?

Este texto surge numa altura em que as divergências entre os partidos que dão apoio ao Governo se intensificaram ao ponto de o Presidente da República ter dado conta publicamente das suas preocupações. Mas já estou a começar mal, porque é só ouvir os dirigentes do BE, do PCP e do PEV para perceber que não se trata de dar apoio ao Governo.

Há quatro partidos que se comprometeram, segundo as posições conjuntas que assinaram, a "negociar um acordo tendo em conta a construção de uma maioria estável, duradoura e credível na Assembleia da República" e a "fazer exames comuns em matérias convergentes". Parece a mesma coisa, mas é uma definição suficientemente ampla para permitir a João Oliveira, líder parlamentar do PCP, responder a um jornalista: "Apoiar o Governo? Mas nós não apoiamos o Governo".

Uma das regras da "geringonça" está clara para todos os envolvidos e é esta: ela não existe para apoiar o executivo de António Costa que é, de facto, minoritário. Negociar orçamentos, sim. Apoiar medidas que revertam as políticas levadas a cabo pelo anterior executivo, sim. Restituir direitos congelados pela troika, sim. Definir metas para o crescimento, não. Concertar a descentralização, não. Aprovar um pacto em matéria de justiça, não. Tudo o que ficou fora dos acordos devia ficar fora da "geringonça" sem gerar instabilidade e sem criar guerras políticas. Nem sempre os partidos e o Governo se lembram disto.

Os acordos são mínimos denominadores comuns. Está lá escrito que "foram os pontos de convergência e não os de divergência que ambos os partidos [no caso o PS e o BE] optaram por valorizar". No ponto 2 lê-se ainda que o processo de negociação que levou à viabilização de um governo alternativo à coligação PàF foi "uma abordagem séria em que se reconheceram a natureza distinta dos programas dos partidos e as diferenças de pressupostos com que observam e enquadram aspectos estruturantes da situação do país".

Até a razão pela qual os partidos vão dizendo que esta solução é irrepetível está plasmada nos acordos bilaterais. Não haverá outra "geringonça" igual, com as mesma limitações ou os mesmos objectivos, porque já não se tratará de "pôr fim a um ciclo de degradação económica e social que a continuação de um governo PSD/CDS prolongaria". Tinha razão Passos Coelho quando dizia que era ele o cimento que unia a esquerda.

Apesar disso, a "geringonça" cumpriu-se, foi crescendo e ultrapassou as fronteiras definidas nos acordos. Alastrou-se a áreas que estavam fora das posições conjuntas e continua a tentar ir além de si própria. É um organismo vivo. Quanto maior está mais fome tem. Os denominadores comuns parecem cada vez mais mínimos, mas a estabilidade, a durabilidade e a credibilidade continuam a estar nos compromissos assumidos.

O Bloco de Esquerda marcou a sua XI Convenção Nacional (equivalente aos congressos dos outros partidos) para os dias 10 e 11 de Novembro deste ano. A última realizou-se no Verão de 2016, mas esta vai acontecer no período entre a apresentação do Orçamento do Estado (OE) para 2019 e a sua votação final global no Parlamento. Este ano, mais do que nos anteriores, o Bloco quer deixar o Governo em suspenso sobre qual será a sua posição relativamente ao OE. Se o partido não contribuir para a sua aprovação, o Presidente pode até marcar eleições legislativas antecipadas. E o organismo vivo não definha, morre. Isto, sim, seria uma espécie de suicídio assistido.

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