“O corpo de uma mulher é perigosíssimo”

Florinhas de Soror Nada conta a vida de uma não-santa. É uma tragicomédia em forma de hagiografia e uma provocação política e religiosa que confirma Luísa Costa Gomes como uma das grandes vozes da literatura portuguesa.

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Miguel Manso

O fim da fé é o princípio do indivíduo, segundo Florinhas de Soror Nada — A Vida de Uma Não-Santa, o mais recente romance de Luísa Costa Gomes, livro que questiona a ideia de santidade por oposição à de individualidade. Nele, a escritora traça um retrato tão trágico quanto irónico do abandono de Deus e, inevitavelmente, do abandono do homem. No centro, há uma mulher que aspira à beatitude, e a relação com o seu corpo serve uma reflexão sobre os discursos políticos acerca do feminino e do culto da imagem — ou do sofrimento — enquanto metáfora de um vazio civilizacional que promove totalitarismos.

Eis o pretexto para uma conversa sobre luz e negrume, epifania e impossibilidade de salvação com uma escritora que, no fim dessa mesma conversa, disse: “A minha costela católica ensinou-me que não se deve falar de nós próprios.” E riu-se, ou o riso não estivesse sempre presente no que escreve. O riso escondido na provocação e o riso aberto que surge de uma ironia que expõe a falha, que mostra o ridículo da existência, que retira a seriedade a quem insiste em se olhar, e ver, de forma sisuda.

Luísa Costa Gomes falou de si própria no lugar onde vive há mais de trinta anos: uma vivenda com quintal num antigo bairro operário para trabalhadores da Lisnave, projectado por Eduardo Nery, na Costa de Caparica, sítio de onde não se vê o mar e onde dá a ilusão de campo, se ouvem galos a cantar e o ladrar de cães a ecoar no vale. É ali que escreve. Romance, conto, guiões, dramaturgia. Versátil, prolífica, é uma das vozes mais independentes, consistentes e de identidade marcada da literatura portuguesa actual. Aos 63 anos, publicou oito romances, cinco volumes de contos, quase uma dezena de peças de teatro e fez a dramaturgia de outras; com Philip Glass e Bob Wilson foi co-autora do libreto da ópera O Corvo Branco, que se estreou em 1998; editou a revista Ficções durante dez anos, escreveu crónicas n‘O Independente e no PÚBLICO. “Divirto-me tanto a escrever... nem sabe!”

A palavra ambivalência é muito usada para classificar a sua obra. Ela é bastante aplicável também a este romance. Revê-se nela?
Sim, mais do que ambivalência, o meu terreno de eleição é o paradoxo.

Antes de ligar o gravador dizia que este livro é uma espécie de anti-Cláudio e Constantino (2007) e anti-Vida de Ramon (1994), dois dos seus romances mais celebrados. Porquê?
Os livros vão jogando uns com os outros, não sei se por competição se por contradição. Este livro foi uma etapa diferente. Sempre tive um grande deslumbramento pela santidade e por visionários como o Ramon Llull [missionário e teólogo catalão, 1232-1316], ou como Francisco de Assis. Eu tinha uma afeição desmedida por estes párias.

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Miguel Manso

De onde veio esse deslumbramento?
Da infância. Em relação a S. Francisco, a ideia de alguém que vive absolutamente de acordo com os seus ideais é uma ideia adolescente, o exemplo do radical por excelência; de alguém que está contra o pai, que considera os pais uns burgueses terríveis. Ou seja, era o grande adolescente, o adolescente radical, e as Fioretti [alusão a I fioretti di san Francesco, texto medieval que conta a vida de S. Francisco de Assis] são uma manifestação do espírito de intolerância que se faz passar pelo contrário, pelo espírito de compaixão. Pensar agora sobre isso deu-me uma visão oposta, a ideia do “abandona tudo e segue-me!”, que é uma ideia de uma crueldade absolutamente terrível, porque as pessoas que ficam são abandonadas. Os grandes místicos são sempre radicais contra as ordens existentes, são grandes fundadores, como, por exemplo, Santa Teresa de Ávila ou S. Francisco de Assis, contra o statu quo, e fundam uma nova ordem mundial. Estes místicos propõem uma nova ordem, fundam uma nova ordem em seu nome; em nome de uma visão do que deve ser.

Mas falava do paradoxo.
E o paradoxo também vem daí. Há sempre zonas de realidade que ficam por iluminar. Este livro é, de certa maneira, o negativo da visão solar e aparentemente benigna e alegre do Cláudio e Constantino. Mas Cláudio e Constantino também têm uma zona razoavelmente negra, essa zona do paradoxo, a da permanente incerteza, da incapacidade de chegar à serenidade de uma certeza, qualquer que ela seja.

Por exemplo, à tranquilidade da fé?
Sim. A serenidade de ter encontrado uma ilusão na qual nos possamos rever. Este livro é sobre a perda dessa fé; é, no fundo, a perda da ingenuidade, da credulidade, e a construção de uma vida feita na relação. Que é sempre uma relação de conflito, de contradição, de compromisso, de reflexão sobre a questão: o que é ser bom? O que é a virtude? Como se pode julgar que se é bom quando se tortura outra pessoa em nome de uma fé, de um princípio fundamentalista de revelação divina?

Temos Teresa, a protagonista, que anseia pela santidade e, numa espécie de epifania ou antiepifania que é a sua perda de fé, sublinha a sua “impotência perante o mal dos bondosos”. Tudo se passa quando um padre humilha publicamente uma criança desprotegida...
Sim, é um sentimento que surge na sequência desse momento crítico que é o “Sermão à Ranhosa” [momento crucial no livro apresentado como “marco de uma inflexão sem retorno”] e se resume de forma simples: como é que se pode ver uma pessoa numa situação extraordinariamente embaraçosa e continuar a torturá-la com o argumento de que é para bem dela, em nome de toda uma série de racionalizações que rejeitam a situação humana, a situação da relação, e se propõe uma leitura iluminada ou segundo princípios? Este é um livro contra os princípios, contra as teorias absolutizantes em que o que é importante é o sistema, não o incidente. No fundo, contra o reino do preconceito.

Como em Teresa, há em todos os santos uma solidão que vem da rebeldia.
Pois, são rebeldes, e daí a sedução que exercem sobre o conformismo geral, que foi o que me seduziu. Eles propõem esse paradoxo, no livro tratado sempre como uma fonte de profunda insatisfação. Propõem um exemplo inalcançável. A capacidade terrível de resistir à tortura e ao sofrimento. Há uma imaginação do sofrimento e da tortura que acho muito contemporânea, da qual desapareceu todo o aspecto religioso e que é apresentada como espectáculo. Hoje temos dificuldade em ver um filme que não tenha uma cena explícita de tortura. As degolações do Daesh foram virais. O espectáculo é sedutor, há uma grande ambivalência em relação a isso, e as religiões, porque são estratégias de sedução de massa, aproveitam essa potência simbólica do sofrimento. A ideia de sofrimento na religião, sobretudo na católica, é sempre uma espécie de culpabilidade. Se as pessoas têm doenças, isso tem que ver com o pecado, ou porque não fizeram tudo bem. Deus está a marcá-las. Por isso é tão curioso o projecto dos santos. E o projecto dos santos é serem eles próprios os instrumentos da própria desgraça.

E a recusa — paradoxal — do prazer.
Sim, do prazer como o entendemos. A teologia normalmente procura lançar um véu filosófico racional criando outra realidade, que é justificativa, explicativa e que retira toda a verdade à experiência mística. Porque a verdade é que ela se passa no corpo. É o corpo que é torturado, é o corpo que sente prazer, é o corpo que faz sacrifícios, é o corpo que sente soberba, e não há como racionalizar isso, não há como fingir que não é assim.

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Romance, conto, guiões, dramaturgia. Versátil, prolífica, é uma das vozes mais independentes e consistentes da literatura portuguesa actual. “Divirto-me tanto a escrever... nem sabe!” Miguel Manso

E o corpo de uma mulher está mais sujeito?
O corpo de uma mulher é perigosíssimo. É uma ameaça global [risos].

Até que ponto houve aqui uma intenção política?
Não acho que seja uma atitude política. É consensual que as igrejas são altamente misóginas. A Bíblia, livro comum às três grandes religiões da palavra, é um texto profundamente misógino. Eva é feminina, a representação da tentação vem da mulher. O homem está sempre numa situação passiva, a ser tentado pelo Diabo, que aparece com a forma da mulher. A religião primitiva, que é a religião dos eremitas e dos anacoretas, é uma religião de homens — de homens velhos — e para eles a mulher seria o Outro absoluto, o grande fantasma do pecado.

A demonização do corpo feminino não vem apenas do lado masculino. As próprias mulheres olham-se, aqui, como uma configuração desse pecado.
As próprias mulheres introjectam essas ideias que aparecem na cultura e são bebidas no leite materno, e é a exposição dessa realidade de introjecção de ódio próprio, ódio ao próprio corpo, ódio àquilo que a mulher representa — tentação, de falta de inteligência, de falta até de princípios, de amoralidade da mulher, de inconstância, enfim, o eterno feminino — que é tematizado na cultura ocidental, e não só. Na cultura oriental, pior ainda, porque não tem o último século e meio de luta abençoado que nos permitiu uma visão alternativa em relação ao que é uma mulher. Continua impregnada a noção de que o corpo da mulher é incompleto, fonte de tentações de crimes. É ainda hoje uma ideia dominante na cultura. 

Uma incompletude que só a maternidade redimiria?
Acho mesmo que nem isso, que não há possibilidade. A sacralização da maternidade foi agora dessacralizada e deixou um enorme vazio. Agora é mais o culto da imagem do corpo, uma imagem estilizada, asséptica. Nas gerações mais novas isso é cada vez mais integrado como banalidade; ter um corpo que tenha que ver com a configuração proposta nos meios de configuração da imaginação. Essa imagem é mais uma manifestação da ideia de que a mulher é um ser incompleto, imperfeito. Feliz ou infelizmente, essa manifestação de incompletude, de imperfeição — talvez por uma certa instabilidade do masculino —, vai debotando sobre tudo o que mexe. Todo o ser vivo tem de se conformar com uma certa imagem de culto. 

Temos a fé como ideia formadora e mais à frente a interrogação: como se construir depois disso, diante do vazio? É uma ideia civilizacional.
Sim, completamente. O livro está construído como uma hagiografia. Há infância infeliz, comum nos santos, e a solidão da santidade e do fazer bem. Normalmente, nas hagiografias o momento da conversão é muito batalhado; há um processo de conversão dialéctico, de assimilação que é também o de transformação noutra pessoa. No caso de Teresa há toda uma experiência de vida, o abandono, o castigo, uma luta contra si própria, contra o que considera o pecado terrível: a soberba. É esse o pecado por excelência dos santos que querem ultrapassar-se permanentemente. Mas a conversão é totalmente imprevisível. Santo Agostinho ouviu uma voz quando estava a dormir uma sesta debaixo de uma figueira. Isso fê-lo converter-se porque já tinha um processo longo. É o processo todo que se cristaliza naquele momento. No caso da desconversão de Teresa é a mesma coisa. Ela levanta os olhos e em vez de ver a Virgem Maria vê um bocado de madeira pintada, e isso leva-a a sair da igreja a correr, apavorada. Mas o processo não acaba aí. Ela vê isso e depois ainda tem de ver uma espécie de manifestação do horror do desaparecimento do sagrado: o humano a torturar outro humano, a cena da humilhação [o “Sermão à Ranhosa”]. 

Há a decisão de Teresa depois de outro momento de crise. Lê-se: “O seu trabalho daqui em diante é reunir-se, alcançar a sua integridade.”
Também é uma ilusão, porque a vida mostra que não é de uma vez por todas que isso se faz, mas todos os dias, e que, de certa maneira, não é seguro que se consiga ser virtuoso, não basta querer.

O tema da perda da fé tem sido tratado na arte e na literatura. O que a fez achar que tinha alguma coisa a acrescentar? 
Acho que a perda da fé é sempre vista como uma perda e eu não a vejo como uma perda; vejo como um princípio e construção positivo. Tudo o que seja destruir ilusões destrutivas parece-me um bom princípio, um princípio de individualização. Os santos são indivíduos, lutam pela sua individuação, pela sua cada vez maior autonomia espiritual. O que parece uma perda é antes um despertar.

E em tudo está a ironia a contrastar e a sublinhar o trágico. Consegue perceber a fonte dessa sua ironia literária?
Ela vem naturalmente. Tenho imensa dificuldade em tomar a sério, ou seja, em tomar as coisas pelo seu valor facial. Não sei explicar como isso acontece. Acho que escrever implica uma boa distância, não estar completamente desligado do que se está a escrever, mas não pode ser um programa imposto de qualquer maneira. Este livro é uma etapa deste livro; ou seja, aquilo que sei agora está aqui. Não significa que daqui a dois anos isto não me pareça relativamente incipiente. Já tenho idade para saber que depois de amanhã é outra coisa e que cada momento tem a sua perspectiva, a sua atmosfera própria, e é esse desenrolar do tempo que é tão surpreendente e interessante.

É um romance político?
Não sei o que significa político. Sempre fiz a distinção entre a política e a politiquice ou politiqueirice, que é para mim detestável. Político quer dizer apenas polis, vivemos na cidade, temos coisas a dizer sobre a maneira como essa sociedade pode ou não ser tornada mais feliz. Feliz não é feliz-alegre. É feliz no sentido de desenvolver as suas potencialidades, ser mais... [pausa] Já não há palavra para isso porque se dissermos “ser mais humana” significa que estamos a referir um modelo humanista que já não existe e, portanto, estamos a referir um modelo ainda em construção, que é pós-humanista e pós-histórico, e pós-tudo; e essa instabilidade do paradigma que vivemos torna as coisas mais voláteis, e todas as opiniões, políticas ou não, mais instáveis também. Não tenho certezas políticas, mas há determinadas coisas que me parecem evidentes. Tornar os homens e as mulheres mais conscientes das suas capacidades parece-me uma coisa boa. Como se faz isso? É discutível. Político para mim significa ter um pensamento, partilhar com os outros um pensamento sobre como devemos viver, como devemos ser. Faz parte de estar na realidade, da vida, a vida que os santos não querem ter. Toda a hagiografia é feita contra a realidade e tudo isso me parece anti-religioso no sentido em que há um apego à ordem que eles próprios criam. Há um investimento narcísico que é mais importante do que a sua diluição nas boas obras divinas. O fundamentalismo é o amor à certeza, uma incapacidade de viver na insegurança da incerteza. Esse sistema tem tendência para ser totalitário, e heterofágico, come tudo à volta e tudo é processado dentro da máquina infernal da certeza.

Dizia que não há uma palavra para definir o que se está a viver, a sensação de que se está a perder um tipo de discurso e não se sabemos que discurso vamos ter. Este livro dá conta dessa passagem, recuperando palavras antigas...
... eu sou um dinossauro. Essas palavras já não são usadas, a realidade dessas coisas desapareceu. Acho que o que é proposto como experiência verbalizável é muito limitado na nossa vida, e isso tem que ver, acho, com a globalização, como termos acesso a tudo, mas a tudo da mesma maneira. Há uma língua franca que é a língua das cinco mil palavras, o inglês primário. Não sei. Vou buscar expressões antigas porque adoro. Todos os meus livros têm um carácter pouco urbano; não sou uma escritora urbana, mas também não sou rústica nem rural.

Qual a sua relação pessoal com essas realidades?
Desconheço-as, são coisas aquilinianas, é tudo dos livros. O que conheço do campo é muito pouco. Mas em relação às palavras não sei se daqui para a frente, com esta necessidade de comunicar e de comunicar coisas que sejam eminentemente reconhecíveis pelo outro, não estaremos a caminhar para uma mera cultura dos emojis. O emoji é muito interessante, leva a uma simplificação comunicacional. A cultura visual exige essa simplificação. Não estou a falar do grande cinema, da grande arte, mas da indústria cultural, do que se chama entretenimento, implica imediatez da comunicação. Há um leque de quatro ou cinco hipóteses de acção e depois temos quatro ou cinco hipóteses de reacção. Não há muito mais. Acho que isso até cria pathways no cérebro, e tudo o que sai fora... uma das coisas que os miúdos mais dizem é “esquisito”, o que é uma limitação da visão do mundo.

E mais uma vez criam-se solidões a quem sai da norma.
As pessoas têm medo da solidão, mas ao mesmo tempo desejam não ter a chatice de estar com os outros. Mas estão a aparecer novos fora de negociação, até de negociação amorosa, que toma em linha de conta os respectivos egoísmos, e isso não é mau. 

Teve uma educação católica?
Felizmente não tive uma educação muito católica, mas ela fazia parte do pensamento dominante. Até aos dez anos tive uma educação razoavelmente livre e depois, no colégio interno, tive mais contacto com os aspectos mais fracturantes da educação católica para meninas num período histórico razoavelmente crítico que foi o princípio da guerra colonial.

E como foi o seu questionamento no colégio; rebelou-se?
Foi complicado, mas o livro não é uma autobiografia. Tem duas ou três coisas que achei que eram boas demais para não as incluir, porque me divertiram imenso. O colégio onde estive era muito específico. Era para filhas de militares, e a parte académica era levada muito a sério.

O colégio boicotou-lhe a fé? Qual foi a influência no modo como estruturou a sua relação com o divino?
Eu tinha uma tendência mística bastante forte, mas nunca fui muito de estudar teologia e catecismos. Era uma coisa mais vaga, ficcional. A minha relação com a religião era absolutamente ficcional. E naturalmente que a Igreja constitui uma enorme decepção para quem tem expectativas super-heróicas.

Por falar em imaginação, a Igreja oferece narrativas prontas...
E contraditórias entre si. No fundo, o que vemos é a vontade de poder, a hipocrisia imensa. É sobretudo uma visão do humano muito pouco benigna, muito pouco benévola. É uma espécie de receita para a insatisfação, para a frustração, para tudo o que é falha.

Boicotadora da imaginação?
Isso é a Igreja. Não os textos, porque esses são extraordinários, têm grande poder de sedução, embora as pessoas não os leiam. Mas está lá o princípio comum da moralidade. 

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